Crise nas Infinitas Terras
Editora: Panini Comics – Edição especial
Autores: Marv Wolfman (roteiro), George Perez (roteiro e desenhos) e Dick Giordano (arte-final) – Originalmente em Crisis of Infinite Earths # 1 a # 12 (1986). Tradução de Jotapê Martins, Fernando Lopes, J.M. Trevisan e Bernardo Santana.
Preço: R$ 115,00
Número de páginas: 464
Data de lançamento: Janeiro de 2016
Sinopse
Uma onda de antimatéria está erradicando universos inteiros. Para impedir a destruição, o Monitor reúne diversos heróis para viajar pelo espaço e pelo tempo e deter o processo.
Mas há uma contraparte maligna, o Antimonitor, por trás do cataclismo. E um trio de personagens – a Precursora, o Pária e o filho do Lex Luthor da Terra-3 – poderá ser decisivo nesse combate destinado a alterar toda a existência.
Positivo/Negativo
Crise nas Infinitas Terras é uma história com uma missão. Além de ser a concretização de um sonho antigo de Marv Wolfman – um imenso crossover com todos os personagens da DC, de seus muitos universos e eras diferentes –, também foi feita para colocar ordem na casa e celebrar os 50 anos da editora.
Barry Allen, o Flash criado em 1956, lia as histórias em quadrinhos do Flash dos anos 1940, Jay Garrick. Até então, era uma brincadeira narrativa, uma homenagem ao primeiro Flash (que aqui é chamado de Joel Ciclone), que havia deixado de ser publicado em 1951, mas inspirou a criação do segundo, um dos pilares da Era de Prata e do renascimento das HQs de super-heróis.
Mas aí veio a história Flash de dois mundos, em 1961, na qual Barry Allen realmente conhece Jay Garrick e fica sabendo (e os leitores também) que ele sempre esteve lá: suas aventuras eram vividas em uma Terra praticamente idêntica à nossa, mas em um universo paralelo, que “vibrava” diferente.
Nascia aí o conceito de Terra-1 e Terra-2 (que aqui já foram chamadas de Terra Ativa e Terra Paralela). A partir daí, heróis da DC cada vez passavam a contracenar com seus correspondentes da outra realidade – na verdade, suas versões anteriores da Era de Ouro, criadas nos anos 1930 e 1940. Passaram a existir também dois Supermen, dois Batmen, duas Mulheres-Maravilha e assim por diante.
Não demorou para que personagens de editoras adquiridas pela DC, que viviam seu próprio núcleo narrativo, recebessem a explicação de que habitavam em outras Terras paralelas. O Capitão Marvel, por exemplo, egresso da Fawcett, pertencia à Terra-S; o Besouro Azul, o Questão e o Capitão Átomo, da Charlton, foram locados na Terra 4.
Com o passar dos anos, não é surpresa que a continuidade tenha se tornado uma bagunça. Os fãs mais caxias conseguiam acompanhar as diferenças entre o Superman da Terra-1 e o da Terra-2 (estabelecido como o original, aquele surgido lá em Action Comics # 1, de junho de 1938).
Mas não era fácil cair de paraquedas em uma trama na qual o Robin era mais velho que o Batman (porque tratava-se do Menino-Prodígio da Terra-2 com o Morcego da Terra-1). E qualquer história alternativa – como o Superman se casando com a Lois Lane – era explicada como mais uma Terra paralela.
Resultado: o número de versões da Terra cresceu desordenadamente e muitas vezes nem os editores e autores conseguiam estabelecer 100% quem era de que realidade ou o que valia como continuidade. Então, imagine os leitores...
Isso começou a mudar no começo dos anos 1980, quando Wolfman conseguiu colocar em marcha seu sonho de infância do gigantesco crossover com a parceria de George Perez, com quem já fazia o período de maior sucesso dos Novos Titãs.
Uma pesquisa de 18 meses foi feita para levantar fatos e personagens que cobrissem toda a história da DC. Nesse período, o roteirista e editor Peter Sanderson simplesmente leu todas as revistas publicadas pela editora de 1935 até então, fazendo suas anotações para ajudar na consistência do roteiro de Wolfman.
E essa longa contextualização é importante para que se tenha muito firme em mente a importância histórica de Crise nas Infinitas Terras. É, sem dúvida, um divisor de águas nos quadrinhos de super-heróis.
Essa pesquisa é a primeira das grandes qualidades de Crise. Não deve haver leitor que não se impressione com a quantidade de personagens que aparecem nos 12 capítulos da saga – com destaque, com algumas falas ou mesmo fazendo só figuração em uma página dupla superpopulosa.
O volume de personagens é incomparável com qualquer outra minissérie publicada até hoje, mas, na prática, não faz diferença se você conhece ou não a grande maioria deles. O que é um acerto do roteiro: o fundamental da leitura não depende tanto desses conhecimentos prévios. E o que é necessário, é explicado – na verdade, até a divisão do multiverso, a partir do big bang, está lá, na primeira página da trama.
Wolfman evita o que hoje se usa muito: um texto com “a história até aqui” ou recordatórios simples identificando os heróis. Ele até utiliza esse recurso uma vez, mas o desafio foi incluir tudo dentro da narrativa. Mas, como sempre, há ganhos e perdas.
Nesse caso, o ganho é uma maior fluidez e agilidade na trama, sem tantos recordatórios que seriam necessários apenas para cumprir esse objetivo. A perda é que Crise se torna um festival de personagens falando de si mesmos na terceira pessoa (“Os poderes psíquicos de Psimon são virtualmente ilimitados”, diz o próprio Psimon; “O Dr. Polaris não gosta de esperar”, diz, no mesmo quadro, o Dr. Polaris).
Ou dizendo os nomes uns dos outros, muitas vezes de maneira bem pouco natural ou em diálogos banais – “Tudo bem, Zinco?; “Vixen, cuidado!”; “Muito bem, Ricardito” etc.
Uma forma de a história não se perder no meio de tanta gente foi tornar quase todos os super-heróis mundo meio coadjuvantes. Mesmo os Supermen ou o Batman. Os personagens principais, mesmo, são o Monitor, seus ajudantes Pária, Precursora e Alexander Luthor, e o adversário, que é o Antimonitor. Eles conduzem a ação quase o tempo inteiro, enquanto heróis mais conhecidos ganham um ou outro momento de protagonismo.
Há elementos da trama que são particularmente interessantes pelo simbolismo que carregam. Alexander Luthor é um deles. O filho do Lex Luthor da Terra-3 (na qual ele é o único herói enfrentando a Sociedade do Crime da América, formada por contrapartes do mal da Liga da Justiça da Terra-1) é enviado por seus pais em um foguete através das dimensões até a Terra-1, enquanto seu universo natal estava sendo destruído. Como Jor-El e Lara fizeram com o Superman, nos momentos finais de Krypton.
Outro caso é o Flash. Figura seminal de Crise nas Infinitas Terras, seu destino na trama praticamente fecha o ciclo aberto por ele mesmo ao inaugurar o Multiverso em Flash de dois mundos. O personagem, que na cronologia da época, começava a trama vivendo no futuro, longe de seus colegas, acabou ganhando uma bela homenagem.
Inclusive pela maneira brilhante como o roteiro joga com sua viagem no tempo – que acontece no meio da trama, mas tem ecos em momentos diferentes, como a aparição do velocista para o Batman no primeiro capítulo, funcionando como um flashforward.
Uma passagem curiosa é o atentado sofrido pelo Monitor no final do terceiro capítulo. O caso é que no capítulo 4 a cena se repete, de novo no final, e com algumas diferenças. Não há qualquer indicação narrativa que justifique a repetição.
O gancho no fim do capítulo 3 parece ser um flashforward do que viria no seguinte, mas sem uma razão específica. Não era uma previsão de um personagem, e a repetição no próximo capítulo torna a anterior bastante gratuita.
Tão curioso quanto é a mudança razoável na cena, também aparentemente sem motivo: o diálogo muda e o Pária, que não estava na primeira sequência, aparece na segunda. Parece uma mudança de rota.
Mas, no geral, a narrativa de Wolfman e Perez (que, segundo o roteirista, no prefácio, passou a ser corroteirista a partir da metade da série) é de encher os olhos. A programação visual é sempre criativa e ousada. E muitas vezes também ganham um simbolismo, como nas primeiras aparições do Antimonitor, nas quais apenas se “ouve” o personagem ou ele aparece em silhueta, em quadros muito estreitos.
Os extras são bastantes generosos, estabelecendo não só um contexto detalhado de como Crise nas Infinitas Terras foi gerada, mas também de suas complexas consequências.
Um dos problemas é que – como se tornou recorrente nos posteriores eventos que “mudariam tudo” – algumas coisas foram modificadas e outras (por conservadorismo editorial ou falta de coragem), não.
A ideia original de Wolfman era que nenhum dos personagens lembrasse do que aconteceu em Crise. Mas os rumos mudaram durante a história e, já no fim, alguns se recordam e outros não.
O reset posterior de alguns personagens (o Superman de John Byrne, o Batman de Frank Miller e David Mazzucchelli etc.) apontava para isso.
Mas as incongruências não demoraram a aparecer e ficariam escancaradas em Lendas (1988), na qual o Kid Flash diz explicitamente que assumiu o manto do Flash em tributo a Barry Allen, o Batman já aparece com o segundo Robin (Jason Todd), a Liga da Justiça surge como a versão fuleira com Vibro, Cigana etc.
E, no entanto, a Mulher-Maravilha aparece no final, praticamente desconhecida pelos outros heróis e fruto do reinício do próprio George Perez. Ou seja: ela não era fundadora da Liga?
Outros problemas de que os extras tratam diz respeito ao destino da Legião dos Super-Heróis. Crise eliminou a Supergirl (talvez o momento mais dramático da série), o Superman da Terra-2 (em uma despedida poética) e o reboot de John Byrne eliminou o Superboy (a versão adolescente do kryptoniano da Terra-1).
O caso é que Superboy e Supergirl tinham uma estreita ligação com a Legião, cujas histórias se passam no futuro. O sumiço desses personagens causou um nó nesse futuro e os extras desta edição definitiva mostram as tentativas de explicar essa situação.
O material traz ainda a relação dos personagens por capítulo, das infinitas Terras e as edições que fizeram crossovers com a minissérie principal.
Há alguns erros de revisão no volume: “As Terra estão se tornando mais visíveis” (página 137), “antimatéria” em vez de “matéria” (236). O problema se repete nos extras, como um tenebroso “licensa”.
Também vale dizer que esses extras estão em corpo de letra muito pequeno, dificultando a leitura do grande volume de informações.
Uma relação maior desses erros, assim como uma contextualização mais aprofundada e consequências editoriais detalhadas da Crise são discutidas no podcast Confins do Universo, no episódio dedicado a esta edição definitiva.
Esta é a quinta publicação da história no Brasil. Primeiro, ela saiu espalhada pelas revistas DC na Abril, em 1987. Depois, a mesma editora a republicou em três edições, em 1989 e em 1996, todas em formatinho. A Panini relançou pela primeira vez em formato americano, com nova tradução, em 2003.
E agora esta edição em capa dura (com uma magnífica arte de Alex Ross, infelizmente cortada no topo), com nova tradução, e que, mesmo com algumas falhas, reflete o status de Crise nas Infinitas Terras: um momento seminal para os quadrinhos de super-heróis.
Mesmo que, com o passar dos anos, a DC acabasse desfazendo todo o trabalho hercúleo de Marv Wolfman: voltaram não só Barry Allen e a Supergirl, mas o próprio Multiverso.
Mas isso é outra história. E, nesse caso em particular, nem boa como Crise nas Infinitas Terras ela é.
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