Destino Adiado – Tomos 1 e 2
Editora: Edições Asa – Série em dois volumes
Autor: Jean-Pierre Gibrat (roteiro e arte) – Originalmente em Le Sursis 1 e 2 (tradução de Pedro Cleto).
Preço: € 14,00 (cada um, preço da época)
Número de páginas: 56 (cada um)
Data de lançamento: Novembro de 2002
Sinopse
Cambeyrac, França, 1943, Segunda Guerra Mundial. Por detrás das persianas semicerradas do seu esconderijo, Julien Sarlat assiste ao seu próprio funeral. Mas o que se pode fazer quando você é obrigado a se esconder? Nada, a não ser ouvir as conversas do café das Tílias ou respirar o ar da noite, longe dos olhares curiosos.
E olhar para Cécile, a paixão de Julien, com quem ele não pode falar ou tocar, que trabalha no café.
A calma é mera aparência, o prazer de ver não passa de uma ilusão. A milícia do Marechal Pétain acaba de ser criada e as colunas de blindados alemães não tardarão a aparecer...
Positivo/Negativo
“Hoje, tenho finalmente uma boa razão para estar de pé por detrás das minhas persianas. Há um enterro… e é o meu!” Este era o pensamento de Julien quando foi testemunha de seu próprio funeral, através da janela de uma residência localizada na rua central da pequena aldeia francesa onde vivera seu professor no primário, que foi deportado por ser judeu e comunista.
Antes desse momento inusitado, o protagonista estaria a contragosto num comboio rumo à Alemanha. Depois de ter desertado furtivamente, o trem foi alvo de um bombardeio dos Aliados e a sua carteira sumida foi encontrada com um corpo que julgaram ser o próprio Julien, por causa da evidência.
Um dos grandes cronistas das HQs mundiais da atualidade, o francês Jean-Pierre Gibrat coloca seu personagem principal numa prisão do cotidiano, tendo como partidários da sua deserção do alistamento compulsório apenas a tia e o seu cachorro de estimação.
Sua sentença seria a morte, mas agora ele está destinado a viver por tempo indeterminado num local abandonado, onde as sombras das persianas marcam seu rosto como as grades invisíveis de suas ações.
Gibrat não presenteia o caráter do protagonista como um valente e bravo soldado, que fará de tudo para libertar a França ocupada das garras da Alemanha nazista. Muito pelo contrário, apesar de Julien torcer e acompanhar tudo ao pé do rádio. Esse medo de morrer devido à sua segunda oportunidade de viver torna ainda mais crível toda a situação e as consequências.
O único confidente do jovem é o dorso de um manequim (encostado pelo ex-professor) que possui um capacete adormecido no seu corpo sem cabeça. Julien o batiza de Maginot, uma alusão à linha de defesa construída pela França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e a Itália nos anos 1930, após a Primeira Guerra Mundial.
Na sua "sentença do destino", o regime é semiaberto, mas com uma particularidade inversa das regras: após as doze badaladas da meia-noite, é que ele se arrisca a deixar a sua "prisão" e visitar sua tia ou espairecer numa perigosa caminhada noturna, na qual chega a trombar até com alguns membros da resistência.
Como um legítimo voyeur, o jovem personagem principal acompanha o dia a dia dos habitantes ao redor da casa abandonada, especialmente a bela Cécile, garçonete do café ao lado e a paixão da sua vida, que nem sabe que ele está vivo.
Essas espiadas fazem com que o leitor – outro adepto (involuntário) do voyeurismo – alimente também uma empatia com os vários coadjuvantes da vila. Podem ser testemunhadas ao longo do tempo as discussões ideológicas na esquina, a volta de soldados do front, o medo e a tensão constante devido à ocupação nazista representada principalmente pelos franceses simpatizantes do Eixo, que fazem parte da sua pequena população.
O leitor acompanha também todos os subterfúgios usados por Julien com o passar dos meses e das estações (as cores na passagem do tempo são outra aula de narrativa do autor) para sobreviver na clandestinidade e no anonimato.
A leitura também corre num tempo diferente, supervisionado pela morosidade do tempo na pequena vila e pelas migalhas das notícias do avanço cadenciado da guerra que vai se arrasando na Europa. Os mínimos detalhes das ruas, da arquitetura, das vestimentas, dos biótipos e da expressividade contornada pelo fino e elegante traço aquarelado de Gibrat "brecam" os olhos de quem está lendo.
Como poucos, o autor sabe equilibrar e oferecer movimento aos seus personagens, colocados numa diagramação tradicional, cujas comportadas grades servem apenas para avançar a sua história. Sem perceber, o leitor fica envolvido pela ansiedade de Julien por se encontrar naquela posição que o deixa longe da sua amada e distante de viver, como se realmente estivesse enterrado após o ataque ao comboio.
Os diálogos, que parecem simples e coloquiais a princípio, servem para construir e reforçar a densidade psicológica, equilibrada no humor e na dramaticidade do testemunho silencioso do personagem na sua busca irremediável pela sobrevivência, mesmo que esteja bem longe dos confrontos, dos bombardeios e da matança de uma guerra.
Inéditos no Brasil e originalmente publicados na França na segunda metade dos anos 1990, os dois tomos de Destino Adiado saíram pela portuguesa Asa em 2002, no formato 24 x 31 cm, capa dura e em papel couché de boa gramatura.
Atualmente, os dois volumes estão fora de catálogo. Em 2008, a editora lusitana, junto com o jornal Público, lançou a obra num único volume (em capa cartonada) na Colecção Grandes Autores de BD.
Infelizmente, pouquíssimo da obra do quadrinhista saiu por aqui. O que se encontra são poucas histórias curtas na série erótica Safadas, que a Nemo publicou em 2014.
Fora isso, o leitor brasileiro saberá como os europeus se comportam quando chega um material dele na editora – com o pessoal babando e se debruçando em cima dos originais – numa passagem real quadrinizada em Os Ignorantes, ótimo álbum do também pouco conhecido Étienne Davodeau, lançado por aqui pela WMF Martins Fontes.
É uma imensa e triste injustiça editorial, pois Jean-Pierre Gibrat deveria ser obrigatório para qualquer um que já leu quadrinhos na vida. Uma poesia não só de traços e cores, mas também de roteiro e narração visual.
Ler Destino Adiado é como apreciar um romance bem escrito e envolvente. Os detalhes e ações que poderiam ser descritos na obra são interpretados pela belíssima arte de Gibrat. Uma narrativa ímpar que só os quadrinhos poderiam "traduzir" e só um artista maduro e completo poderia conceber.
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