Dupin
Editora: Zarabatana – Edição especial
Autor: Leandro Melite (roteiro e arte).
Preço: R$ 70,00
Número de páginas: 208
Data de lançamento: Novembro de 2015
Sinopse
O ano é 2008 e a crise econômica estende suas asas podres sobre a Europa. Após a morte de seu pai, o sombrio jovem Gustave Chevalier deixa Portugal para morar com a família materna no Brasil.
Dotado de um olhar crítico aguçado e um discurso apocalíptico, Gustave rapidamente se liga ao solitário e inseguro primo Eduard, compartilhando com este seu fascínio por super-heróis, brinquedos e histórias em quadrinhos.
Ao se depararem com a notícia de um inexplicável assassinato, a quixotesca dupla se rende a um faz de conta no qual desvendar um mistério, se tornar um herói e conhecer a si mesmo fazem parte de uma única e inevitável ação: um salto na escuridão em direção a um monstro.
Positivo/Negativo
Livremente inspirado em Os assassinatos da Rua Morgue (1841), obra do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), Dupin é o terceiro trabalho de fôlego do L. M. Melite, autor do experimental A desistência do azul (também lançado pela Zarabatana, em 2012) e a autobiográfica Leviatã (HQ bem mais curta publicada nas páginas da Café Espacial # 13).
Neste álbum, o “livremente” deve ser bem frisado. Liberto dos grilhões de uma mera adaptação, o leitor pode até saber de cor todo o conto de Poe, mas aqui o importante é como Melite o conduz.
Primeiramente, ele tira (quase) totalmente C. Auguste Dupin do seu habitat natural. Ainda há sua postura europeia, aquele ar arrogante, num tom como se tivesse sido tirado de “livros velhos”. O personagem – como bem elucida a orelha da edição – é um dos precursores do detetive intelectual da ficção, que serviu de modelo para outros ícones literários como o Sherlock de sir Arthur Conan Doyle (1859-1930).
Da Paris do Século 19 para a São Paulo do Século 21. Com sotaque lusitano, Dupin é reapresentado como um adolescente às portas da maioridade. Assim como seu primo, Eduard, que faz a vez de narrador da história no álbum, assim como o amigo misterioso do Dupin de Poe.
Com o choque cultural mesmo nos dias de hoje, o primo define o protagonista como uma mistura de O Pequeno Príncipe com “aquele vocalista deprimido do Radiohead”. Melhor resumo para o personagem não há.
Apesar de terem criações tão diferentes, algo os une: ambos alimentam o “faro” para o mistério, seja para bisbilhotar casas abandonadas ou fazer análise e hipótese dedutiva de um crime.
O delito aqui é o mesmo da obra original, quando duas mulheres são brutalmente assassinadas num quarto trancado por dentro. Essa procura inquietante por algo importante e por respostas é que move os garotos.
A busca pela solução também faz com que Melite aborde a evocação do herói, simbolizado por brinquedos que uma hora seriam abandonados pela outra busca – a da maturidade –, mas que fazem parte do processo de aprendizado.
Tanto que a representação das figuras de ação dos super-heróis como “atores” para dramatizar os depoimentos das testemunhas move as engrenagens lógicas de Dupin. Note que há simbolismos em muitas camadas, a exemplo do acusado de matar as mulheres ser representado por Pierrot, o vilão chorão, alusão à ingenuidade do personagem da Commedia dell'Arte.
Atire o primeiro membro quebrado de boneco quem nunca imaginou as suas próprias histórias na infância manipulando como títere esses brinquedos. Aqui não é diferente.
Melite também usa os heróis para a dedução do jovem detetive em relação aos pensamentos do primo quando os dois andam na rua. Essa e outras passagens são semelhantes a Os assassinatos da Rua Morgue, mas o que mais importa aqui é a customização bem própria que o autor oferece ao álbum.
Essa “apropriação” de várias personas também é presenciada no próprio protagonista, seja num momento de fúria, seja na sua explicação de não se dar bem com a eletricidade, relembrando em tom confidencial outro Dupin, o francês da literatura, quando sua mãe lia para ele dormir. Quais são os nossos papéis no mundo? Um só não basta.
Tudo ocorre de forma bastante orgânica. Na construção de sua narrativa, o quadrinhista não oferece ao namorado da mãe de Eduard, um policial bronco, a dimensionalidade de apenas ser um passaporte fácil para colocar os garotos na cena do crime. Desde o início, existe espaço para o conflito (complexo) de crescer sem uma figura paterna.
No ápice, há o confronto entre o racional e o irracional, tudo orquestrado com uma arte nervosa, dinâmica (direcionada também pela diagramação) e estranhamente atraente. Com inteligência, personalidade e também sem insultar o raciocínio do leitor, Melite se apropria da obra original e a transforma em algo novo sem a sensação de déjà vu.
Como curiosidade para evocação nostálgica do super-herói, o autor tira o chapéu – ou seria o capuz? – para uma das grandes obras de Frank Miller, O Cavaleiro das Trevas. Ele mimetiza duas cenas da obra: quando Batman soca Superman (Eduard fazendo o mesmo com Dupin, na página 127) e o famoso pulo da primeira capa (acrobacia reverenciada, na página 167).
Para quem quiser conhecer o pioneiro detetive de vida curta no mundo da literatura de Poe, ele protagoniza mais dois contos, A carta roubada e O mistério de Marie Roget, ambos publicados em 1845.
Já os que quiserem saber o próximo passo de L. M. Melite, um autor que vem cada vez mais se destacando no cenário nacional, basta torcer para que sua nova HQ seja inquietante, como a coceira intelectual do C. Auguste Dupin de solucionar um crime.
Elementar, Dupin é um dos melhores lançamentos de 2015. Recomendadíssimo.
Classificação
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