Kaputt
Editora: WMF Martins Fontes – Edição especial
Autores: Curzio Malaparte (texto original) e Guazzelli (adaptação e arte).
Preço: R$ 59,00
Número de páginas: 184
Data de lançamento: Novembro de 2014
Sinopse
Seis contos escritos pelo jornalista, escritor e multicriador italiano Curzio Malaparte, enquanto ele cobria a Segunda Guerra Mundial para o jornal Corriere della Sera são adaptados para os quadrinhos.
Positivo/Negativo
Durante a guerra, um oficial nazista responsável por incontáveis massacres confronta um menino que deu uns tiros em sua tropa. Ele diz que não quer fazer mal ao garoto, argumenta que não inventou o conflito e que não está ali para matar crianças. E então propõe um desafio:
– Escute, eu tenho um olho de vidro. É difícil distingui-lo do verdadeiro. Se você souber dizer logo, sem ficar pensando qual dos dois é o de vidro, deixo você ir em liberdade.
O menino não hesita:
– O olho esquerdo.
O oficial fica espantado com a assertividade do garoto. Pergunta como ele conseguiu diferenciar.
O garoto explica:
– Porque, dos dois, é o único que tem algo de humano.
***
A cena descrita está em Kaputt. É citada aqui como exemplo do que se trata o livro: um libelo contra a guerra, sim, mas também contra a desumanização, a xenofobia, a violência.
Há outras do mesmo naipe.
Por exemplo, quando as cabeças de cavalos que morreram congelados ao tentar atravessar um rio começam a putrificar e a exalar um cheiro forte. E um homem fala para outro:
– Morre tudo que a Europa possui de nobre, de amável, de puro. Morre a nossa pátria, a nossa antiga pátria.
Outro exemplo: numa reunião, alemães falam do quanto polacos e judeus são desprezíveis – mas quem mesmo é desprezível?
Mais um: uma pilha de corpos de judeus mortos despenca em cima de um homem.
Kaputt é um livro de contos escrito pelo italiano Curzio Malaparte durante a Segunda Guerra Mundial. Na Itália, tem status de clássico. No Brasil, já teve dias melhores – atualmente, nem sequer tem uma tradução em catálogo. Mas agora ganha um novo tratamento: uma ousada versão em quadrinhos criada por Guazzelli, um dos maiores quadrinhistas brasileiros.
Em entrevistas, Guazzelli conta que foi convidado pelos editores da WMF Martins Fontes (que, na moita, vem construindo um senhor catálogo de HQs) a pensar num projeto que quisesse muito fazer. Escolheu Kaputt, livro preferido de seu pai – um advogado muito combativo, conhecido pela oposição ferrenha à ditadura militar.
Guazzelli é um imenso criador, e até mesmo uma bula de remédio adaptada por ele mereceria atenção. Mas Kaputt parece especial. Talvez por ter feito parte de sua formação, por ter ficado em sua mente e influenciado seus trabalhos autorais, a obra tem tudo a ver com o autor. É como se livro e adaptador estivessem se preparando, esperando um pelo outro. Juntos, ambos crescem.
Na verdade, Kaputt não é exatamente sobre a Segunda Guerra, não no sentido de recapitular fatos históricos. É um livro que se passa na época, que a retrata, e desvela seus horrores, mas não é sobre a guerra. Na verdade, é sobre nós, sobre um mundo desumano, xenófobo, que flerta com o fascismo, com a repressão, com o medo do diferente.
É uma obra atualíssima: porque a Segunda Guerra acabou, mas a Faixa de Gaza, a África, os trabalhadores escravos do Brasil, a Ucrânia e a Cracolândia estão aí. O desprezo por quem é pobre, gay, índio, faminto, por quem mora no bairro X, por quem anda de transporte público, por quem veste a roupa tal, tudo isso continua aí.
Uma arte que não desse conta do peso humanista da obra seria catastrófica. E o desenho do álbum é riquíssimo, inteligentíssimo. As linhas são ao mesmo tempo soltas e precisas. Os quadros são complexos e também concisos. Revelam e escondem, em um jogo narrativo impecável. Em vez de optar por uma estética datada, o desenho de Guazzelli reforça brutalmente a contemporaneidade.
Não há dúvidas: Kaputt está aqui, Kaputt é sobre nós.
Classificação