Confins do Universo 216 - Editoras brasileiras # 6: Que Figura!
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Lavagem

24 abril 2015

LavagemEditora: Mino – Edição especial

Autor: Shiko (roteiro e arte).

Preço: R$ 44,00

Número de páginas: 72

Data de lançamento: Abril de 2015

Sinopse

Um casal vive isolado em um mangue: ela é analfabeta e temente a Deus, mas deseja o pecado quando cruza o estuário de balsa para seu encontro com o divino. Ele, descrente em virtude do embrutecimento oferecido pela vida, divide seu tempo mais com os porcos do que com as pessoas.

Um dia, quando os brados de “aleluia!” do pastor na televisão dão lugar ao zumbido incessante da estática, bate à porta do casal um “homem de Deus”, que transpôs a inacessível maré alta para trazer muito mais do que a “palavra” decorada entre seus dentes ou pinçada aleatoriamente da Bíblia Sagrada.

Positivo/Negativo

Tomando como base o curta-metragem homônimo dirigido pelo próprio Shiko e lançado em 2011, pela cooperativa Filmes a Granel, Lavagem ganha uma identidade exclusiva no decurso da narrativa do quadrinhista.

Mesmo se utilizando de uma cadência cinematográfica, o autor não se vale do álbum como uma espécie de mero storyboard da produção audiovisual. A obra tem sua “voz”, expandindo e se adequando por meio de seus dinâmicos recursos gráficos.

Nota-se que Shiko usa em muitas sequências a diagramação horizontal, como o widescreen cinematográfico, sempre respeitando e balanceando os elementos “em cena”.

A obra mostra a expiação da “imundície” dos pecados ocorridos sob o terreno movediço e traidor dos manguezais, perante criaturas bestiais, cujos grunhidos suínos tentam traçar um diálogo – ou alerta – do que está ocorrendo ao redor, como os demônios chafurdando na consciência.

O ser humano como uma “ilha” quando a maré da ignorância sobe, esperando uma salvação como o náufrago se apega ao bote.

Shiko se utiliza tanto da sutilidade de uma pergunta trivial na embarcação até o casamento de imagens sexuais com passagens do Antigo Testamento e escancarados episódios bíblicos, como a caminhada sobre as águas.

Apesar de a água estar muito presente no álbum por se passar em um mangue, o cenário remete mais ao clima dantesco: a constante aparição de uma cabeça de boneca como lixo trazido pela maré alta pode se configurar em um dos círculos infernais destinado ao suplício das almas dos condenados.

Também não é à toa que o pregador vem ao som da estática da TV, que está ligada aos fenômenos sobrenaturais, como o portal dimensional de Poltergeist, vide o famoso filme de terror com mesmo nome, produzido por Steven Spielberg e dirigido por Tobe Hooper em 1982 (que está ganhando uma refilmagem).

Outro símbolo fundamental é o copo de vidro, que remete ao aprisionamento do espírito para contato físico com o além na tábua de Ouija. Aqui, seu papel também pode ser entendido como de “libertar a alma”, assim como o significado abrangente do título da HQ: lavar a alma (como também o próprio corpo, novamente o sentido carnal do terror) ou fazer a comida da vara de demoníacos porcos, outra alusão dantesca.

Antes das sequências mais gore e viscerais de Lavagem, Shiko alterna a constante tensão entre os personagens – um passivo marido bronco, uma angustiada “beata pecadora” e a respeitosa “pessoa da Igreja” – com o grafismo da Palavra de Deus no ar acompanhado do barulho dos chuviscos televisivo.

Explorando todas as camadas de horror, o quadrinhista mostra tortura psicológica com direito ao clássico jogo de iluminação aliado à violência gráfica de primeira, revezando com uma arte em preto e branco cheia de hachuras (o que lembra mestres da narrativa do gênero) e seus sombrios tons de cinza, sempre bem aplicados.

Depois de sua estreia em 2014, com L'amour: 12 oz, de Luciano Salles, a Mino mandou muito bem. Lavagem apresenta uma belíssima capa “limpa” (o logo da editora passou para a quarta capa), que remete à cabeça da boneca no meio do mangue ao longo da história, capa dura, papel pólen de boa gramatura e impressão, formato 28 x 19,5 cm e um preço justo, se comparado à qualidade apresentada.

Evidenciado em suas outras obras, como Piteco – Ingá e O azul indiferente do céu, Shiko vai se firmando como um dos grandes nomes das histórias em quadrinhos do Brasil.

Classificação

4,5

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