Pílulas azuis
Editora: Nemo – Edição especial
Autor: Frederik Peeters (roteiro e arte) – Originalmente em Pilules bleues (Tradução de Fernando Scheibe).
Preço: R$ 39,90
Número de páginas: 208
Data de lançamento: Junho de 2015
Sinopse
Frederik Peeters conta sua história ao lado da companheira, Cati, desde os primeiros encontros nas rodas de amigos até a revelação de ela e seu filho (um menino de quatro anos, de um relacionamento anterior) serem soropositivos.
Entram em cena todas as emoções contraditórias que o autor tem de aprender a gerenciar, como amor, piedade, raiva e compaixão, sem deixar de lançar algumas verdades duras e surpreendentes sobre o assunto do HIV, seus preconceitos e o tratamento.
Positivo/Negativo
Doença altamente contagiosa, sem cura, que mata em curto espaço de tempo. Era o diagnóstico que se tinha sobre a AIDS nos anos 1980. Com o medo e o crescente número de vítimas na época, vinha também o preconceito e a falta de aprofundamento sobre a enfermidade, cujo vírus ataca as células do sistema imunológico, destruindo os glóbulos brancos do infectado.
Mesmo com os avanços medicamentosos gradativamente mais eficazes e a informação cada vez mais imediata virtualmente, o HIV ainda é um verdadeiro tabu para um grande número de pessoas, gerando o mesmo preconceito de décadas atrás.
Do mesmo autor de Aâma, série publicada também pela Nemo (veja resenhas aqui e aqui), este premiado álbum é – acima de tudo – uma franca história de amor.
Essa sinceridade que precisava ser analisada, dissecada e colocada num papel vai além dos modismos das biografias em forma de HQ. Peeters não quer passar a impressão de bom-mocismo ou de ser uma pessoa “correta”, livre das amarras do preconceito. Pílulas azuis é bem mais complexo nos seus quadrinhos.
Sem ser superficial ou piegas, o autor suíço revela as camadas de um relacionamento com uma soropositiva, a Cati, desde o turbilhão de sentimentos dos mais extremos quando se “cai a ficha” na hora da revelação, passando pela privação da entrega do ato sexual na sua totalidade, até o sofrimento de ambos nas dores morais e psicológicas.
Afinal, junto com a personalidade, contato visual, tato, química, situação financeira e tantos fatores que aproximam as pessoas, o sangue é indubitavelmente o estreitamento para os futuros laços de constituição de uma família. Com a contaminação (ou uma possível contaminação do parceiro), mesmo sem se manifestar fisicamente, a doença se torna um ser onipresente na vida do casal, algo que “aleija” o amor.
Mesmo com a coragem e maturidade de enfrentar o “problema”, o mundo da autoconfiança pode enfrentar o Apocalipse quando um simples preservativo estoura. A mera ideia palpável da não existência e do consequente sofrimento assusta até o mais destemido.
Apavora tanto que Peeters perde a coragem de informar aos próprios pais sobre a condição de saúde da Cati, situação que não é retomada por ele no seu recorte, o que gera apenas um subentendimento por parte do leitor acerca de uma resolução ou conflito familiar.
A figura de um médico que esclarece as dúvidas de ambos é a única indicação mais “didática” da obra. Passagens que não são pedantes devido à personalidade do doutor – um tipo comum, sem máscaras, cheio de altos e baixos, como qualquer um –, nas quais o autor ainda exercita sua imaginação e bom humor, colocando leveza nas situações de consulta clínica.
Assim como a AIDS “etiqueta” suas vítimas, existem especialistas e médicos que não deixam de lado o preconceito, chegando a tachar pessoas como Peeters e Cati de “casal discordante”, como visto no início da história.
Outro mote chamativo no relato é o relacionamento com o pequeno enteado. Interessante notar como o comportamento do quadrinhista vai mudando com o convívio com a criança de quatro anos.
Equiparado ao texto, agradável também é o traço cartunesco e solto do suíço, bem diferente de outras obras mais detalhadas e realistas dele, como a já citada Aâma e Castelo de Areia (Tordesilhas).
Adicionando sequências surreais e filosóficas envolvendo rinocerontes e mamutes, com direito a citações do escritor vitoriano Oscar Wilde ao ator hollywoodiano Burt Reynolds, Peeters procura confrontar a situação e se entender no embate com a racionalização e os impasses emocionais.
Por ser um depoimento e uma reflexão tão pessoais, ao mesmo tempo promovendo uma desmistificação do tema, é bom lembrar a velha máxima de “cada caso é um caso”. Se o indivíduo não tomar os devidos cuidados na hora do parto ou se dedicar ao contínuo tratamento com antirretrovirais, o HIV vai continuar sendo disseminado.
Em 2001, ano do seu lançamento original, a obra ganhou o prêmio Rodolphe Töpffer, em Genebra, Suíça. No ano seguinte, recebeu o Polish Jury Prize (prêmio do júri polonês) no Festival de Angoulême, na França.
A publicação em brochura da editora Nemo tem formato 17 x 24 cm, capa cartonada com orelhas, papel off-set de boa gramatura e impressão.
Como extra, a versão brasileira segue as edições mais recentes do álbum, incluindo mais dez páginas sobre a família de Frederik Peeters 13 anos depois da publicação original.
Outro adendo sutil são as impressões nas capas internas do livro, mostrando várias cenas dos personagens ao longo dos anos, como uma espécie de álbum de família.
Esclarecedor, comovente, sensível e bem-humorado. Pílulas azuis pode até não ser um retrato fiel como um diário ou documentário, mas Peeters despeja todas as suas reflexões e o seu nanquim na obra para ficar “vazio” e promover uma expurgação dos próprios demônios. Um verdadeiro tratado de idiossincrasia.
Nas páginas da HQ, praticamente não se observa os dois se beijando, mas os imensos olhos de Cati retratados pelo autor já denunciam o amor que ela sente por ele. Em contrapartida, o simples fato de ele ter feito o álbum já escancara o sentimento que sente por ela.
Sem exageros emotivos, canções favoritas, juras ou conflitos familiares, Pílulas azuis é uma das melhores histórias de amor: com a sinceridade pulsante que corre como o sangue.
Classificação