Confins do Universo 216 - Editoras brasileiras # 6: Que Figura!
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Sopa de lágrimas

14 outubro 2016

Sopa de lágrimasEditora: Veneta – Edição especial

Autor: Gilbert Hernandez (roteiro e arte) – Originalmente em Heartbreak Soup (Tradução de Marina Della Valle).

Preço: R$ 79,90

Número de páginas: 288

Data de lançamento: Julho de 2016

Sinopse

Em Palomar, um vilarejo localizado em algum ponto da América do Sul, Gato amava Pipo que amava Manuel que não amava ninguém, mas namorava todas. Dentre histórias de amor, dramas familiares, brincadeiras de moleques e uma pitada de sobrenatural, o leitor é apresentado a Luba, uma exuberante forasteira que se instala no povoado; Chelo, a bañadora oficial da cidade; e Típin Típin, o último romântico de coração partido.

Positivo/Negativo

"Nunca vi nada assim nos quadrinhos, talvez só na literatura. Em quadrinhos, nunca vi nada que chegasse perto", chegou a declarar um dos pais do underground norte-americano, Robert Crumb, especificamente sobre Sopa de Lágrimas.

Não é apenas ele ou Neil Gaiman (que assina uma declaração na quarta capa desta edição da Veneta) que já rasgaram elogios à série independente Love & Rockets, criada no começo dos anos 1980 pelos Hernandez – Gilbert, Jaime e o esquecido (por não ter uma produção igual à dos irmãos) Mario: dentre as fileiras dos seus fãs estão nomes como Alan Moore, Moebius (1938-2012), Howard Chaykin e Grant Morrison.

Publicada até hoje, a premiadíssima obra chegou a ser lançada por aqui, mas sua qualidade nunca atestou uma longevidade. Desde o final dos anos 1980, editoras como a VHD Diffusion, Record, Conrad, Via Lettera, Arte Sequencial, Zarabatana e Gal tentaram apresentar aos leitores todos os ricos nuances de Love & Rockets.

Assim como as ideias carimbadas pelo nanquim de Crumb e os ideais punks do "do it yourself", os Hernandez começaram a publicar artesanalmente suas revistas, com uma tiragem de aproximadamente 800 exemplares.

A criação do zine partiu do irmão mais velho, Mario. Quando enviaram um exemplar para o editor do renomado Comics Journal, Gary Groth, ele ficou tão maravilhado com a novidade que convidou os quadrinhistas a publicarem de modo mais profissional na Fantagraphics, editora do celeiro alternativo de HQs norte-americanas, fundada por Groth e Miguel Catron, e que abriga o título até os dias atuais.

Mario abandonou o barco nos primeiros números, mas Jaime e Gilbert Hernandez continuaram, criando universos paralelos que terminam dialogando entre si pelo clima do fantástico nas histórias que imitam a vida como ela é, com personagens que envelhecem, amam, odeiam, engordam e morrem.

Por um lado, enquanto Locas, série de Jaime, abordava o urbano, o cotidiano, a sci-fi e o punk dos subúrbios chicanos californianos (a origem dos autores), por outro as crônicas vindas da fictícia Palomar, idealizada por Gilbert (também conhecido como Beto), têm um ar mais ancestral, mágico e igualmente humanizado no dia a dia tragicômico de seus habitantes.

Vilarejo situado em algum lugar da América Latina, Palomar é o legítimo protagonista, eixo de rotação de Sopa de Lágrimas. Apesar de Gilbert ter começado em Love & Rockets com HQs mais voltadas à ficção científica (como as tramas de Errata Stigmata, personagem que faz uma ponta aqui), foi nesse povoado com um censo demográfico de menos de 400 habitantes que o autor encontrou seu filão.

De certa forma, esse aspecto não foi abandonado na série. Todos os conflitos e situações cotidianas de Palomar também vêm com toques oriundos do realismo mágico (ou fantástico), corrente literária latino-americana criada no Século 20.

Como o nome já define, a corrente tem como principal característica amalgamar o universo mágico de forma completamente intuitiva, sem explicações racionais, à realidade, como se tais elementos fizessem parte dela sem parecer estranha.

O clássico Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), chega a ser uma das inspirações de Gilbert Hernandez para seus trabalhos, apesar do quadrinhista ter lido quando Love & Rockets já estava em mais de uma dezena de números. O livro chega a ser citado por um personagem numa das histórias de Sopa de Lágrimas, como uma espécie de reverência.

Tapetes voadores, ciganos que ressuscitam, prosa com espíritos, alquimia e a beleza de uma mulher que simplesmente ascende aos céus como anjos também fazem parte da saga da família Buendía, cujas origens se encontram em Macondo, um vilarejo que praticamente "pariu" Palomar, como uma reprodução por bipartição.

Nas peculiaridades das narrativas de Gilbert, o leitor poderá testemunhar um local cheio de gatos falantes, fantasmas tímidos, maldições de bruxas que carregam crânios de bebês, enormes lesmas comestíveis, crianças que desaparecem durante eclipses e garotas que correm como o vento.

Esse realismo mágico é apenas uma camada do álbum. O que chama realmente a atenção é a qualidade e requinte literário que a obra carrega nos seus diálogos, narrações e descrições.

Dentre as várias histórias sem um número de páginas definidas, o autor vai e volta no tempo, mostrando como é a vida de personagens que nasceram pelas mãos de Chelo, a musculosa parteira da cidadezinha e dona de uma casa de banhos. Esses meninos e meninas crescem, tornam-se adultos, melhores amigos, amantes ou inimigos e tomam caminhos diferentes com o passar dos anos.

Os "corações partidos" da receita do título original em inglês são o mote das primeiras histórias. O quadrinhista não se importa se cada destino ou ação de seus habitantes venha a ter um cunho moral ou edificante. Ele conduz organicamente, como se tivessem realmente vida própria. O amor pode tirar o sangue, mas também pode se reconciliar.

Essa pegada passional como é configurada nos quadrinhos dos Hernandez é uma peculiaridade dos povos latinos. Às vezes, as intenções podem ser platônicas, brutais, desprovidas ou carregadas de preconceitos e até insanas.

Assim como há uma carga pesada de sentimentos imperfeitos, existe também um desfile de humor peculiar, que alterna entre o óbvio nonsense, passando pelo inocente e pueril, até o escrachado.

A obra é cercada de mulheres fortes e marcantes. Uma das personagens principais de Sopa de Lágrimas é a felliniana com tempero latino Luba, a bela forasteira que abre uma casa de banhos, promovendo uma concorrência direta com Chelo.

Mulher independente, dona de seu próprio nariz, mãe de três filhas (e mais outra que vem no meio das histórias), Luba arranca suspiros dos homens e burburinhos maldosos das mulheres por onde passa. Por sua força, é um tipo de personagem que poderia muito bem ter saído dos enredos de Jorge Amado (1912-2001) ou do já citado García Márquez.

Embora não se use mais o termo originado nos tempos da Guerra Fria (e vigente na época de lançamento dessas HQs), o quadro de país de Terceiro Mundo é tão atual quanto "país subdesenvolvido" ou "em desenvolvimento", alcunhas utilizadas atualmente nas divisões geopolíticas.

Palomar é "abandonada por Deus", sem rede telefônica, televisão ou posto de saúde. A única figura de ordem é um xerife brucutu que define leis absurdas na hora para exercer seu poder. O precário cinema caindo aos pedaços gerenciado por Luba também é um reflexo desse abandono: em determinado momento, ela indaga porque Bruce Lee – morto em 1973 – não faz mais filmes.

Quando o velho projetor quebra no meio da sessão e Luba grita na sala para o público impaciente o final de O Mensageiro do Diabo (1955), clássico dirigido por Charles Laughton (1899-1962) e estrelado por Robert Mitchum (1917-1997), é impossível não remeter ao universo do longa-metragem italiano Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore.

Talvez a maior crítica social seja a vinda de um fotógrafo norte-americano pelas ruas do vilarejo, querendo clicar "a poesia" naturalista das pessoas e paisagens, sem se importar para o que elas realmente pensam ou desejam.

Comparando a arte de Gilbert com o traço de Jaime, os desenhos são mais "rústicos" e menos elegantes que o irmão criador das Locas (que também aparecem numa ponta), porém, quando se observa todo o caleidoscópio narrativo aqui presente, pode-se considerar que Gilbert vence na "luta libre", como um roteirista mais maduro.

A edição da Veneta tem formato 20 x 25 cm, capa cartonada fosca com orelhas e papel off-set de boa gramatura e impressão. A editora promete lançar mais dois volumes sobre as crônicas de Palomar criadas por Gilbert Hernandez.

O que destoa do conjunto é a capa, que utiliza uma ampliação de um desenho do miolo. Sem graça, poderia ter sido usada qualquer uma das belas capas da série lá fora.

Lembrando que a maioria dessas histórias apresentadas já foram publicadas no Brasil, em volumes como Crônicas de Palomar (1991, Record), Sopa de Gran Peña e Pés de Pato (respectivamente 2004 e 2008, ambos da Via Lettera).

Não é de se impressionar que nomes do mercado internacional de quadrinhos supracitados reverenciem e até mesmo bebam da fonte dos Hernandez. Basta ler Sopa de Lágrimas e se deixar levar na imersão de um turbilhão de personagens com características bem marcantes e próprias, que formam seu todo.

Palomar pode ser parte de um mundo imaginário que poderia existir, mas que também não se deixa de concretizar e viver na cabeça de quem lê, o forasteiro que se encanta com algo tão "normal" que é a humanização da ficção.

Classificação

5,0

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