No Brasil, terror tinha nome: Spektro
Os
leitores mais jovens podem não saber, mas entre os gêneros de quadrinhos
que sempre fizeram sucesso em território nacional, o terror merece grande
destaque.
Com uma tradição que começou décadas atrás, diversos títulos já passaram
por nossas bancas, abordando desde lobisomens, vampiros e monstros até
religiões diversas (macumba, anjos e demônios), passando até por alguns
"causos" verídicos e outros nem tanto...
Em meio a tantas e diversas publicações, uma mereceu (e ainda merece)
destaque especial: A revista Spektro. Publicada pela Editora
Vecchi entre os anos de 1977 e 1982, durou 28 edições. Tinha mais
de 160 páginas por edição, em preto e branco.
No
início, eram publicadas apenas histórias do Dr. Spektro, personagem da
editora americana Gold Key, daí o nome da revista. Como o número
de histórias com esse personagem era pequeno e o sucesso foi grande, foram
incorporadas, a partir da segunda edição, histórias da editora Fawcett
(Dr. Morte e Dr. Mistério) e republicações de material nacional da década
de 60, que saíram na revista Clássicos do Terror. Em seguida, foi
a vez de entrarem histórias da editora Charlton Publications (Dr.Graves).
A revista tinha algumas características básicas, como o uso de personagens
como narradores, uma constante. No entanto, como provavelmente não havia
pacientes em número suficiente para tantos doutores, com o andar da carruagem,
as histórias nacionais passaram a ter cada vez mais destaque, até que
passaram a publicar 100% material brasileiro.
O diretor da redação, Otacílio d'Assunção Barros (mais conhecido como
Ota) era extremamente
profícuo. Além da função de editor, acumulou também a de roteirista, escrevendo
várias e várias histórias para desenhistas diferentes, utilizando-se inclusive
de diversos pseudônimos.
Os artistas eram um show à parte. Spektro lançou no mercado gente
como Watson Portela e Mano, além de contar com a participação permanente
de Flavio Colin, Júlio
Shimamoto, Manoel Ferreira, Itamar, Lobo, Eugênio Colonnese e muitos
outros.
Algumas das séries de maior sucesso na revista foram:
Hotel
Nicanor - Flavio Colin criou juntamente com Ota a série do Hotel Nicanor,
um hotel escondido no interior que recebia estranhos hóspedes, todos monstros
canibais e assassinos. O desenho de Colin para essa série é fantástico.
Um estilo caricatural, bastante divertido, que prende a atenção do leitor
página após página. Ota assinou o roteiro sob o pseudônimo de Juka Galvão,
uma roteirista mulher. Freud explica...
Chegaram os tempos - Uma ótima história publicada em três partes
sobre anjos e demônios. Olendino escreve e desenha a trajetória de uma
garota que recebe um demônio e fica grávida do mesmo. O anjo Gabriel intervém
e expulsa o demo, porém comete o pecado de apaixonar-se pela garota. A
ira divina recai sobre ele, que decide ficar com sua amada. Eles transam
e ela engravida, sem saber que Gabriel deixou de ser um anjo, pois, por
ter caído em tentação, foi transformado em demônio. A vinda do anticristo
estava assegurada.
Trio Diabólico - As histórias desenhadas por Mano, principalmente
o "trio diabólico" formado por Sinhá Preta, o Filho de Satã e o Homem
do Patuá, quando publicadas, chegavam a aumentar as vendas da revista.
Cabe aqui um elogio ao artista: ele situava seus enredos historicamente,
respeitando a linguagem e os elementos do sertão nordestino, como os cangaceiros,
os coronéis e seus capangas, a seca, a pobreza e a fome.
Paralelas
- Essa série de Watson Portela foi publicada originalmente nas edições
de Spektro de números 8, 10,
20 e 21,
e levou o artista a ser conhecido nacionalmente. Ele era um dos preferidos
entre os leitores. Todas essas histórias fizeram tanto sucesso, que seus
protagonistas acabaram voltando nas edições seguintes. Viva o material
nacional!
Entre os artistas internacionais, tivemos entre outros Steve Dikto (Homem-Aranha)
e Mick Zeck (Mestre do Kung Fu, Capitão América).
Curiosidade: A Spektro foi uma das primeiras revistas a publicar, no Brasil,
uma história desenhada por John Byrne (Superman, X-Men). Foi no
número 13, e a aventura, chamada Os Herdeiros do Apocalipse, falava
sobre os passageiros de uma espaçonave que, ao partirem em uma viagem
para Marte, presenciam no planeta Terra o holocausto nuclear, conseguem
voltar e pousam na Groelândia, onde encontram um gigante primitivo, mamutes
e tigres dente-de-sabre (acredite se quiser!). Não consta se o argumento
é ou não do Byrne. A história era mais voltada para ficção científica
do que para o terror puro e simples.
Essa
mescla entre autores nacionais e internacionais deu margem a uma comparação
interessante. O ingrediente "sexo" praticamente não aparecia nas histórias
que vinham de fora, devido principalmente ao Comics Code, a lei
que coibia e censurava o que era publicado nos Estados Unidos.
Já nas histórias nacionais... Bem, digamos que sexo era um "ingrediente
fundamental". Além de aumentar o interesse do leitor, com certeza era
um deleite, principalmente para os jovens leitores da época (alguns bens
jovens, diga-se de passagem, grupo do qual, na época, eu fazia parte).
Outro ponto forte nas histórias nacionais era o humor, principalmente
humor negro. Um ótimo exemplo é De Volta ao Mundo do Terror, publicada
em Spektro n° 23, onde o desenhista
Colonnese sonha com personagens de terror de sua criação exigindo que
volte a desenhar e, por isso, ele procura o editor Ota, solicitando sua
inclusão na revista. No final, Ota agradece ao capeta por ter colaborado
para a volta do artista... É mole?
Uma característica interessante, presente principalmente nos primeiros
números, eram artigos com contos de terror, biografias de escritores e
desenhistas famosos (sempre relacionados ao gênero) como, por exemplo,
H. G. Wells, Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e outros, além de textos
sobre filmes de terror, diretores e atores. No número 19 foi publicado
um dicionário dos rituais afro-brasileiros (termos relacionados com a
macumba). Enfim, um prato cheio para os fãs. Toda edição tinha uma seção
de Humor Negro, com diversas piadas.
Um fato que fica claro no decorrer de todos os números publicados é o
empenho do editor, Ota, em defender a participação de artistas nacionais.
Uma luta inglória, como sabemos ainda hoje, devido ao baixo custo da importação
de quadrinhos, principalmente, os enlatados de super-heróis americanos.
Na época, estava em votação no Senado uma emenda que obrigaria as editoras
a publicarem uma porcentagem determinada de quadrinhos Made in Brazil,
porém, a tal lei não foi aprovada. Se tivesse sido, talvez o panorama
atual fosse outro...
Hoje,
é lamentável que dificilmente possamos encontrar referências ou novas
obras da maioria dos artistas nacionais aqui citados. A exceção fica por
conta de Shimamoto, lançou Sombras e Volúpia, pela Editora Opera Graphica,
e Flavio Colin, que desenhou Fawcett, para a Editora
Nona Arte.
Os demais, eventualmente, encontramos uma ou outra história em publicações
nacionais de HQ's. A grande maioria, senão todos, por uma questão de sobrevivência
financeira, teve que optar por profissões das mais diversas possíveis,
fora do universo dos quadrinhos. Falta de reconhecimento e, especialmente,
o aspecto financeiro, resultaram na parca produção nacional e na desistência
e decepção de tantos e tantos artistas com o meio. Triste!
Em 1994, Ota relançou a Spektro
pelo seu selo, o Otacomix, em formato americano, com três histórias.
A revista não vingou, pois teve baixas vendas, principalmente, por causa
dos problemas com a distribuição. Uma das histórias, Vampiro Eletrônico,
ganhou o Prêmio Nova como melhor história profissional do ano de
1994. Com roteiro dele mesmo, e desenhos de Shimamoto, conta a história
do retorno do verdadeiro Conde Drácula, via Internet.
A revista Spektro é lembrada até hoje pelos fãs de HQ's da época
e seus exemplares dificilmente são encontrados, mesmo em sebos especializados.
Chegou a vender, em sua época áurea, mais de 40 mil exemplares por edição!
Em todas as revistas eram enviados questionários, com perguntas sobre
o que o leitor gostou ou não. Entre 500 e mil cartas-resposta chegavam
pelos correios para cada número e determinavam a linha editorial para
o número seguinte. As histórias de Mano eram as mais elogiadas.
As
capas da revista, algumas com um nível de excelência altíssimo, eram feitas
por Shimamoto, Mano, Lobo, Ofeliano e Carlos Chagas, sendo que estes últimos
fizeram algumas memoráveis.
Por isso tudo, Spektro foi um marco nos quadrinhos brasileiros
e deixou saudades.
Em 1995, a Ediouro publicou uma revista chamada Colecão
Assombração. Novamente sob o comando de Ota, o material nacional
voltou à carga, inclusive com histórias inéditas, de artistas que trabalharam
para a Spektro. Infelizmente, os tempos eram outros, a revista
não emplacou, durando somente oito números.
Marcelo Naranjo
é absolutamente fascinado pelo gênero terror. Graças à sua predileção
por materiais antigos, estamos começando a desconfiar que o cara é, na
verdade, uma "múmia", pois só isso explica sua memória para coisas publicadas
há tanto tempo! Sinistro... Muito sinistro!
Agradecimentos:
Ota - Que gentilmente forneceu diversos dados.
Eduardo de Mendonça Gonçalves, leitor que me enviou a capa da Spektro
#27.