Festival de Angoulême envolto em polêmica
A 43ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, um dos maiores e mais importantes eventos do gênero, vai se realizar na França, entre os dias 28 e 31 de janeiro.
Como ocorre todos os anos, uma lista inicial foi divulgada, elaborada por um comitê composto por Stéphane Beaujean, Nicolas Finet e Ezilda Tribot, com os nomes dos indicados para o Grand Prix, prêmio dedicado a toda obra e carreira de um autor, que teve - ou ainda têm - grande importância para os quadrinhos. Em 2015, o vencedor foi Katsuhiro Otomo, o criador da série Akira. Outros artistas que já ganharam o prêmio incluem: Bill Watterson, Robert crumb, Moebius, Jijé, Will Eisner, André Franquin, Art Spiegelman, François Schuitten, Régis Loisel, Baru, José Muñoz, Jacques Tardi, etc.
A polêmica ocorreu porque a lista de 30 nomes - que é extremamente variada, com autores da Europa, Estados Unidos, Argentina, Japão, etc -, não inclui uma única mulher.
Desde que o festival de Angoulême foi criado, várias artistas já foram premiadas, como Claire Bretécher, que recebeu o Prêmio do décimo aniversário do Festival, em 1983 - ano no qual o vencedor do Grand Prix foi Jean-Claude Forrest -; Marjane Satrapi, vencedora de três prêmios (Revelação, por Persépolis, em 2001; prêmio de roteiro pelo segundo volume de Persépolis, em 2002; e melhor HQ, em 2005, por Frango com Ameixas); Marguerite Abouet, em 2006; Isabelle Pralong, em 2008; Camille Jourdy, em 2010; Élodie Durand e Ulli Lust, em 2011; e Lisa Lugrin, em 2015.
Florence Cestac foi a única mulher a vencer o Grand Prix, em 2000.
Os nomes indicados inicialmente na lista divulgada foram: Brian M. Bendis, Christian Binet, Christophe Blain, Françoise Bourgeon, Charles Burns, Pierre Christin, Daniel Clowes, Richard Corben, Cosey, Étienne Davodeau, Nicolas de Crécy, Edika, Carlos Giménez, Emmanuel Guibert, Hermann, Alejandro Jodorowsky, Stan Lee, Milo Manara, Taiyô Matsumoto, Lorenzo Mattotti, Frank Miller, Alan Moore, Quino, Riad Sattouf, Joann Sfar, Bill Sienkiewicz, Jirô Taniguchi, Naoki Urasawa, Jean Van Hamme e Chris Ware.
O primeiro autor a se manifestar foi Riad Sattouf, de O Árabe do Futuro. Numa mensagem postada no Facebook, no dia 5 de janeiro, ele disse que ficou muito feliz, mas também triste, pois não havia nenhuma mulher na lista. Ele disse que preferia ceder sua indicação para artistas como RumikoTakahashi, Julie Douces, Anouk Ricard, Marjane Satrapi ou Catherine Meurisse.
A atitude de Sattouf foi seguida por outros, que também optaram por boicotar o prêmio, incluindo: Daniel Clowes, Charles Burns, Pierre Christin, Milo Manara, François Bourgeon, Chris Ware, Christophe Blain e Étienne Davodeau.
Joann Sfar, autor de O Gato do Rabino, declarou numa entrevista ao Huffington Post: "Nunca me senti representado pelo Festival de Angoulême, por milhares de razões". Ele chamou a organização do evento de feudal e disse que não era produtivo.
A ministra da cultura da França, Fleur Pellerin, declarou, no dia 6 de janeiro, que “a cultura tem que ser exemplar em termos de paridade e no respeito à diversidade e não é isso que foi visto. É surpreendente, mesmo que as mulheres estejam em minoria entre os quadrinistas, que numa lista de 30 nomes não conseguiram achar uma mulher para homenagear. É uma situação anormal."
Num comunicado na rede social Twitter, a secretária do Estado para os Direitos das Mulheres, da França, Pascale Boistard, escreveu: "Recebi em dezembro o grupo Collectif des créatrices de bande dessinée contre le sexisme (Coletivo das Criadoras de Quadrinhos contra o Sexismo). A sua luta pelo reconhecimento é legítima."
O Collectif des créatrices de bande dessinée contre le sexisme, que reúne 147 artistas, foi uma das primeiras entidades a repudiar a lista dos 30 nomes. No site do coletivo, foi feito um trocadilho com a sigla do evento, FIBD - Festival International de la Bande Dessinée (Festival Internacional de Quadrinhos), que passou a significar FIBD - Femmes Interdites de Bande Dessinée (Mulheres Proibidas nos Quadrinhos).
Num especial sobre Charlie Hebdo, a rádio France Inter conversou com a ilustradora Coco, uma das integrantes do semanário. Ela disse: "Foi de propósito? Não podemos esquecer que também existem mulheres!"
A desenhista Pénélope Bagieu, artista com muita popularidade na França, chamou a lista de uma "discriminação evidente" e que era "uma total negação da representatividade". Ela acrescentou que o prêmio não é apenas uma honraria, mas exerce um forte impacto econômico na carreira do homenageado. "Nós pedimos apenas uma consideração da realidade de nossa existência e valor".
Mirion Malle, desenhista do blog Commando Cullotte, disse que várias mulheres fizeram história nos quadrinhos, como por exemplo, Alison Bechdel, Catel, Barbara Canepa, Debbie Dreschler, Julie Doucet, Chantal Montellier, Trina Robbins e Jeanne Puchol. Ela também criticou o fato de que o cartunista Zep ganhou o Grand Prix, em 2004, com uma carreira curta e apenas um grande trabalho, a série Titeuf.
Levando em conta que o vencedor de 2015 foi o autor japonês Katsuhiro Otomo, Malle citou as desenhistas Naoko Takeuchi, o coletivo Clamp e Rumiko Takahashi, como opções para 2016.
O diretor geral do evento, Franck Bondoux, respondeu que o Grand Prix é como um espelho, um prêmio que celebra a obra de um desenhista. "O festival não pode distorcer a realidade, mesmo concedendo o fato de que a lista realmente poderia ter incluído o nome de uma ou duas mulheres". Ele disse que não iriam introduzir um sistema de quotas e questionar obrigatoriedade da inclusão de mulheres no critério de seleção do prêmio, que deveria refletir os méritos da carreira dos artistas, sejam eles homens ou mulheres.
"O festival não pode ser tachado de sexista, uma vez que o evento não se reduz apenas ao Grand Prix e inclui outros prêmios, como o Fauve D'or, que possui muito maior paridade e diversidade", declarou Bondoux, antes de ser informado sobre o boicote de Sattouf e outros artistas.
Após a polêmica e o boicote, a direção do evento inicialmente divulgou que iria acrescentar mulheres à lista, mas justificou a decisão dizendo que não pode reformular a história e que no passado, sempre que a lista incluiu mulheres, ninguém votou naquelas artistas. Mais tarde, outro comunicado mudou completamente os rumos da premiação.
Ninguém será indicado. Os membros da entidade e todos aqueles que tiveram seus trabalhos publicados na França, em 2015, foram convidados a votar em quem quiserem para o Grand Prix. Segundo eles, esse é o passo final para a democratização das indicações do prêmio e aceitarão a vontade dos autores para eleger o vencedor.