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A Grande Farsa

Editora Comix Zone – Edição especialR$ 71,90224 páginasLançado em agosto de 2020.
Carlos Trillo (roteiro), Domingo Mandrafina (desenhos) – Originalmente, publicadas na Argentina como Cosecha Verde e El Iguana (tradução de Jana Bianchi).
15 janeiro 2021

Sinopse

Livro Um – A Grande Farsa

Na nação insular latina A Colônia, Malinche Centurión sobrinha do ditador local (além de sua escrava sexual incestuosa) é a mítica “virgem intocada” e “milagreira” nacional, personagem maior da máquina de propaganda do Estado.

Ao ser chantageada com fotos íntimas que não somente destroçam a lenda ao seu redor, mas colocam sua vida em risco ao expor uma traição ao seu tio, resta-lhe recorrer ao ex-policial desgraçado Donaldo Reynoso para ajudar a encontrar quem a ameaça e impedir que essas imagens vejam a luz do dia.

Porém, o Iguana, maior capanga da ditadura e terror absoluto do povo, está em seu encalço.

Livro Dois – O Iguana

O desenrolar dos eventos de A Grande Farsa chamam a atenção da imprensa internacional. A ambiciosa e sagaz repórter investigativa Susan Ling, uma estrela do jornalismo norte-americano, vai para A Colônia para investigar o pavor da população local pela figura do Iguana.

Positivo/Negativo

A editora Comix Zone está de parabéns. Com esta edição, traz ao Brasil uma das maiores obras do quadrinho argentino, escrita por aquele que talvez seja o roteirista hermano mais reverenciado desde Hector Oesterheld, em parceria com um mestre inequívoco do traço. Em sua publicação na França, como La Grande Arnaque, foi premiada no Festival de Angoulême.

O formato escolhido faz jus à qualidade do material. As belíssimas capa, quarta capa e lombada evocam em suas cores todo o clima de noites tropicais que permeiam os álbuns. A opção por publicar tanto a historieta original, como sua sequência, em um único volume é acertadíssima, bem como ter mantido a arte original, em preto e branco, muito mais adequada ao clima da trama e que permite desfrutar da arte de Domingo Mandrafina em seu melhor.

Há poucos erros de revisão, mas nenhum que atrapalhe a experiência da leitura. O trabalho de tradução e preparação de texto é muito bom. E o letreiramento emula perfeitamente a fonte original do artista.

O jornalista Paulo Ramos, autor do excelente Bienvenido – Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos, um dos melhores livros sobre as historietas argentinas, abre os trabalhos com um ótimo texto, apresentando os autores e comentando sobre o histórico da obra.

Por serem bem distintas, vale se deter mais na primeira história, bastante superior à segunda, que funciona como uma revisita a lugares e pessoas queridas, sob um prisma diferente. Não que O Iguana deixe a desejar. Longe disso, é divertidíssima. Mas, A Grande Farsa é uma pérola e merece ser apreciada como tal.

O ponto que mais abre a distância entre as duas é o trabalho de roteiro. Cheio de nuances, com uma alternância de momentos bem-sucedidos em suas intenções de humor, tensão, sensualidade, crítica e catarse. Há um casamento perfeito entre o noir e o realismo fantástico, transbordando criatividade. A quebra da quarta parede é usada com charme e carisma poucas vezes vistos, tão teatral quanto brilhante.

A arte da Mandrafina se equipara ao nível do texto como poucas parcerias conseguem. Atua como complemento indissociável para a construção do cenário e atores da trama. Tem um domínio magistral de luz e sombra. Sua narrativa compõe brilhantemente a quebra da quarta parede, variando a arte-final para sinalizar os flashbacks, que assumem tons de sépia na mente do leitor, enquanto seus olhos encaram apenas nanquim negro e papel branco.

E se na primeira história o escritor está no seu jogo mais alto, é na segunda trama que Domingo evoca Breccia e seu claro-escuro é acrescido de uma brincadeira com colagens e traços feitos por materiais diversos, sem nunca perder a identidade ou parecer um pastiche.

A primeira parte permite várias reflexões. A mais óbvia é que, ao ser lida, é impossível não vislumbrar nela quase toda nação latino-americana em algum dado momento de sua História. A Colônia são todos os países americanos abaixo dos Estados Unidos, mas nenhum deles, especificamente.

Pior ainda: nos métodos de propaganda do governo, repletos de mentiras, mitos e inimigos imaginários deslocados do tempo. No estilo do governante, um bufão despreparado, egocêntrico, violento e autoritário. Nas consequências para a nação, anacrônica e subdesenvolvida ao ponto de o leitor jurar que a História se passa na década de 1950 (noção quebrada somente no terço final da continuação). Também é fácil enxergar vícios muito vivos em nosso continente, independentes de espectro político, mas onipresentes em nossa sina de flerte com autoritários.

Ainda assim, a ilha é charmosa e seu povo, tanto encantador quanto perigoso. Há um belíssimo trabalho de construção dos personagens. O trio principal é carisma puro. Donaldo é a transposição de Humphrey Bogart para o Sul tropical: um policial competente e honesto, expulso da força e destroçado por confrontar esquemas de gente influente. Desiludido, mas incapaz de dizer não para uma linda mulher em apuros.

Malinche, rosto angelical e corpo voluptuoso, a linda mulher desgraçada por um homem mau-caráter, em busca de resgate e redenção de seu destino.

Iguana, uma força da natureza, é o vilão cruel, diabólico, implacável e genial, que se lança à caçada de suas vítimas com eficiência tão assustadora quanto seu visual de homem-lagarto.

O elenco de coadjuvantes adorna esse tridente de ouro como pequenos brilhantes: o autor genial “forçado” a ser propagandista oficial (função que exerce com uma  amoralidade e competência assustadoras, impulsionado pelo seu ego e o desafio de criar as mais mirabolantes mentiras, que viram fatos no imaginário popular), a dona do bordel, o nazista exilado infiltrado nos altos círculos, o ditador latino genérico, a dona da casa noturna, todos dão sabor à história.

Pra quem se pergunta qual o significado do título original, Cosecha Verde é o processo viticultor no qual se colhe parte das uvas antes que alcancem a maturação. Com isso, reduz-se a oferta, garantindo preços e a manutenção da produção como de costume, ano após ano, evitando o risco de que excedentes derrubem o status quo do mercado.

Em suma, é a mola propulsora de toda fábrica de grandes farsas que um governante autoritário lança mão para manter-se no poder. Que as alegorias apresentadas neste livro não sejam esquecidas tão cedo.

Classificação:

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