A Grande Farsa
Sinopse
Livro Um – A Grande Farsa
Na nação insular latina A Colônia, Malinche Centurión sobrinha do ditador local (além de sua escrava sexual incestuosa) é a mítica “virgem intocada” e “milagreira” nacional, personagem maior da máquina de propaganda do Estado.
Ao ser chantageada com fotos íntimas que não somente destroçam a lenda ao seu redor, mas colocam sua vida em risco ao expor uma traição ao seu tio, resta-lhe recorrer ao ex-policial desgraçado Donaldo Reynoso para ajudar a encontrar quem a ameaça e impedir que essas imagens vejam a luz do dia.
Porém, o Iguana, maior capanga da ditadura e terror absoluto do povo, está em seu encalço.
Livro Dois – O Iguana
O desenrolar dos eventos de A Grande Farsa chamam a atenção da imprensa internacional. A ambiciosa e sagaz repórter investigativa Susan Ling, uma estrela do jornalismo norte-americano, vai para A Colônia para investigar o pavor da população local pela figura do Iguana.
Positivo/Negativo
A editora Comix Zone está de parabéns. Com esta edição, traz ao Brasil uma das maiores obras do quadrinho argentino, escrita por aquele que talvez seja o roteirista hermano mais reverenciado desde Hector Oesterheld, em parceria com um mestre inequívoco do traço. Em sua publicação na França, como La Grande Arnaque, foi premiada no Festival de Angoulême.
O formato escolhido faz jus à qualidade do material. As belíssimas capa, quarta capa e lombada evocam em suas cores todo o clima de noites tropicais que permeiam os álbuns. A opção por publicar tanto a historieta original, como sua sequência, em um único volume é acertadíssima, bem como ter mantido a arte original, em preto e branco, muito mais adequada ao clima da trama e que permite desfrutar da arte de Domingo Mandrafina em seu melhor.
Há poucos erros de revisão, mas nenhum que atrapalhe a experiência da leitura. O trabalho de tradução e preparação de texto é muito bom. E o letreiramento emula perfeitamente a fonte original do artista.
O jornalista Paulo Ramos, autor do excelente Bienvenido – Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos, um dos melhores livros sobre as historietas argentinas, abre os trabalhos com um ótimo texto, apresentando os autores e comentando sobre o histórico da obra.
Por serem bem distintas, vale se deter mais na primeira história, bastante superior à segunda, que funciona como uma revisita a lugares e pessoas queridas, sob um prisma diferente. Não que O Iguana deixe a desejar. Longe disso, é divertidíssima. Mas, A Grande Farsa é uma pérola e merece ser apreciada como tal.
O ponto que mais abre a distância entre as duas é o trabalho de roteiro. Cheio de nuances, com uma alternância de momentos bem-sucedidos em suas intenções de humor, tensão, sensualidade, crítica e catarse. Há um casamento perfeito entre o noir e o realismo fantástico, transbordando criatividade. A quebra da quarta parede é usada com charme e carisma poucas vezes vistos, tão teatral quanto brilhante.
A arte da Mandrafina se equipara ao nível do texto como poucas parcerias conseguem. Atua como complemento indissociável para a construção do cenário e atores da trama. Tem um domínio magistral de luz e sombra. Sua narrativa compõe brilhantemente a quebra da quarta parede, variando a arte-final para sinalizar os flashbacks, que assumem tons de sépia na mente do leitor, enquanto seus olhos encaram apenas nanquim negro e papel branco.
E se na primeira história o escritor está no seu jogo mais alto, é na segunda trama que Domingo evoca Breccia e seu claro-escuro é acrescido de uma brincadeira com colagens e traços feitos por materiais diversos, sem nunca perder a identidade ou parecer um pastiche.
A primeira parte permite várias reflexões. A mais óbvia é que, ao ser lida, é impossível não vislumbrar nela quase toda nação latino-americana em algum dado momento de sua História. A Colônia são todos os países americanos abaixo dos Estados Unidos, mas nenhum deles, especificamente.
Pior ainda: nos métodos de propaganda do governo, repletos de mentiras, mitos e inimigos imaginários deslocados do tempo. No estilo do governante, um bufão despreparado, egocêntrico, violento e autoritário. Nas consequências para a nação, anacrônica e subdesenvolvida ao ponto de o leitor jurar que a História se passa na década de 1950 (noção quebrada somente no terço final da continuação). Também é fácil enxergar vícios muito vivos em nosso continente, independentes de espectro político, mas onipresentes em nossa sina de flerte com autoritários.
Ainda assim, a ilha é charmosa e seu povo, tanto encantador quanto perigoso. Há um belíssimo trabalho de construção dos personagens. O trio principal é carisma puro. Donaldo é a transposição de Humphrey Bogart para o Sul tropical: um policial competente e honesto, expulso da força e destroçado por confrontar esquemas de gente influente. Desiludido, mas incapaz de dizer não para uma linda mulher em apuros.
Malinche, rosto angelical e corpo voluptuoso, a linda mulher desgraçada por um homem mau-caráter, em busca de resgate e redenção de seu destino.
Iguana, uma força da natureza, é o vilão cruel, diabólico, implacável e genial, que se lança à caçada de suas vítimas com eficiência tão assustadora quanto seu visual de homem-lagarto.
O elenco de coadjuvantes adorna esse tridente de ouro como pequenos brilhantes: o autor genial “forçado” a ser propagandista oficial (função que exerce com uma amoralidade e competência assustadoras, impulsionado pelo seu ego e o desafio de criar as mais mirabolantes mentiras, que viram fatos no imaginário popular), a dona do bordel, o nazista exilado infiltrado nos altos círculos, o ditador latino genérico, a dona da casa noturna, todos dão sabor à história.
Pra quem se pergunta qual o significado do título original, Cosecha Verde é o processo viticultor no qual se colhe parte das uvas antes que alcancem a maturação. Com isso, reduz-se a oferta, garantindo preços e a manutenção da produção como de costume, ano após ano, evitando o risco de que excedentes derrubem o status quo do mercado.
Em suma, é a mola propulsora de toda fábrica de grandes farsas que um governante autoritário lança mão para manter-se no poder. Que as alegorias apresentadas neste livro não sejam esquecidas tão cedo.
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