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AS INCRÍVEIS AVENTURAS DE KAVALIER & CLAY

21 maio 2004


Título: AS INCRÍVEIS AVENTURAS DE KAVALIER & CLAY (Editora Record) - Romance

Autores: Michael Chabon (texto).

Preço: R$ 58,00

Número de páginas: 672

Data de lançamento: Primeiro semestre de 2002

Sinopse: O romance conta a história de dois primos judeus, Josef Kavalier (Joe) e Samuel Klayman (Sam), jovens artistas que durante o ano de 1939 criam um novo herói de quadrinhos, influenciados pelo sucesso do Super-Homem.

Nasce assim o Escapista, dedicado a libertar todos os que se encontram cativos, estejam onde estiverem. Com sua chave mágica, que lhe confere superpoderes, nenhum cadeado, nenhuma corrente pode segurá-lo. Esta breve descrição é a síntese perfeita das ambições e desejos de seus criadores.

Joe Kavalier é um jovem tcheco que acaba de chegar à América, após fugir de Praga, uma cidade marcada pela burocracia do regime nazista e pelo crescente anti-semitismo. Ainda na Europa, ele é obrigado pela própria família a emigrar, buscando um destino melhor nos Estados Unidos.

Posteriormente, essa despedida forçada desembocará num complexo de sobrevivente do qual ele não consegue fugir, por mais que tente. Dono de vários talentos e habilidades, Joe será o responsável pelos desenhos do Escapista.

Sam Clay é um jovem americano sonhador, que desde cedo trabalha duro para conseguir as coisas. Nas horas vagas, vive no mundo dos pulps, um lugar mais colorido e feliz do que o nosso, povoado de heróis viris, vilões cruéis e mulheres indefesas.

O resto do tempo, ele gasta bolando planos para ficar rico fazendo quadrinhos, coisa que apenas se torna real com a chegada de seu primo europeu. Sua facilidade para escrever vai colocá-lo à frente dos roteiros do Escapista.

Positivo/Negativo: Desde crianças, aprendemos que o ser humano é o único animal que pode refletir sobre seu papel no ciclo biológico e na cadeia alimentar. Mas ele também é o único que, às vezes, nega essa realidade e tenta escapar dela. Os outros animais aceitam o destino melhor do que o homem, pois fogem apenas de ameaças físicas, como predadores.

Não temos predadores (exceto nós mesmos), porém inventamos desculpas, criamos estratégias, tecemos explicações, tudo para tentar fugir das coisas que nos afligem. Essa necessidade de escapar dos problemas é o tema central deste romance de Michael Chabon, ganhador do Prêmio Pulitzer de 2000. Um reconhecimento merecido, pois o livro é um verdadeiro tratado sobre o escapismo humano e suas variações.

Em suas páginas, os personagens protagonizam diversos tipos de fugas. Algumas reais, como escapar da Europa em pleno regime nazista ou de correntes e cadeados, ao melhor estilo Harry Houdini. Outras psicológicas, como escapulir da realidade por meio dos gibis, de um casamento infeliz ou da própria sexualidade. Sem esquecer da fuga mais extrema de todas, o suicídio.

Paralelo a isso, Chabon traça um riquíssimo painel da Era de Ouro dos quadrinhos, chamada assim por causa do lucro astronômico que as revistas conseguiam.

O leitor testemunha tanto o apogeu dos super-heróis, sintetizado nas dez milhões de edições vendidas mensalmente pelo Super-Homem (primeiro e maior ícone do gênero), quanto seu declínio, decretado pelo fim da II Guerra Mundial.

Misturando também um estilo ora romanceado, ora jornalístico, a obra recria com fidelidade o clima cultural de Nova York no começo dos anos 40. Uma cidade lendária, quase mítica, que se achava o ápice da civilização humana. Nessa época, o Empire State era realmente o maior prédio do mundo e os Estados Unidos ainda eram chamados de "Terra da Liberdade".

Outro mérito do livro é prestar a justa homenagem aos grandes artistas dos anos 30, que após uma infância pobre conquistaram a fama e o carinho de milhares de fãs da Nona Arte. Mesmo quase nunca tendo a merecida recompensa financeira, estes homens jamais se recusaram a levar sonhos e fantasias a milhões de crianças.

Ao narrar a história de Joe e Sam, Michael Chabon também conta a respeito desses artistas, que fizeram a Era de Ouro acontecer, e que deixaram como legado grandes símbolos dos quadrinhos, como Super-Homem, Batman, Capitão América e Spirit. Por causa disso, hoje, nomes como Joe Shuster, Jerry Siegel, Will Eisner, Bob Kane e Jack Kirby fazem parte da história dos quadrinhos.

Depois da leitura de Kavalier & Clay, seria bom também reservar um lugar de honra neste rol de artistas e heróis para Joe, Sam e o Escapista. Sim, porque o livro é tão hábil na caracterização de época, que ninguém pode garantir totalmente que os personagens não foram reais.

Assim como é real também o papel da mitologia judaica e de Harry Houdini na concepção do super-herói, elementos subestimados que Chabon resgata no romance, para provar que o fato dos grandes autores de quadrinhos da década de 1930 serem todos judeus não é mera coincidência, pois tanto a Cabala e o Golem quanto o mito do grande mágico iam de encontro aos ventos nefastos que sopravam da Alemanha.

Por isso, pode-se dizer que o nazismo forneceu inspiração suficiente, nos Estados Unidos, para a criação de seus próprios inimigos ideológicos. Quem sabe se o alvo da perseguição de Hitler e seus asseclas não fosse outro, também não seriam outros os criadores dos super-heróis? Essa é agora uma questão hipotética, que ficará sempre no campo da imaginação.

Falando na Segunda Guerra, ela e suas mazelas psicológicas merecem um capítulo à parte, chamado O Homem do Rádio. Nele, o clima narrativo do romance muda e se torna uma história de guerra típica, mas cujo cenário foge brilhantemente dos clichês do gênero. É bastante irônico que o conflito mundial se estenda ao local mais inóspito da Terra, onde os homens precisam muito mais de comida e de calor do que de armas e bombas.

Com o fim do capítulo, e também da guerra, o autor rapidamente faz sua obra mudar de tom novamente, dessa vez trocando os anos 30 pelos 50. Agora, o Inimigo não é mais um ditador de bigode, mas aquele estranho e "opressor" regime de governo que é contra a livre iniciativa, cujos seus defensores "comem criancinhas".

Longe do cenário político, tudo é alegria e esperança no cotidiano dos americanos. Eles acreditam piamente que estão no rumo da felicidade, com seus gramados verdes, com cerquinhas brancas e a plaquinha Home, Sweet Home (Lar, Doce Lar) pendurada na parede. Enquanto isso, as revistas em quadrinhos também passam por uma reformulação.

Saem os super-heróis e seus uniformes espalhafatosos, entram em cena os criminosos, espiões, lobisomens, vampiros e zumbis. As vendas dos quadrinhos de terror e violência disparam, e os jovens começam a quebrar regras ao som de Elvis Presley e Chuck Berry. O que está acontecendo ao sonho americano? De quem será a culpa pela rebeldia dos seus filhos?

Esta é a deixa para o Dr. Fredric Wertham publicar seu famoso livro Sedução dos Inocentes, que aponta as histórias em quadrinhos como responsáveis pela delinqüência juvenil. Isso cai como uma bomba atômica no mercado editorial, que até então tinha vivido uma rica diversidade de gêneros e leitores.

E o fim dessa história, todos os fãs de quadrinhos já conhecem. Na criação do Comics Code, na castração da liberdade criativa de vários artistas promissores e no abrupto fim da EC Comics, a editora que mais lutou na época para que os quadrinhos fossem reconhecidos também como leitura de adultos, não apenas de crianças.

Chabon prefere encerrar o romance um pouco antes disso, deixando a resolução de algumas tramas em aberto. Ele resolve a maior parte dos conflitos, mas como na vida real nada realmente termina, é permitido ao leitor apenas vislumbrar se as decisões dos personagens irão levá-los a uma vida melhor do que antes, aplacando, enfim, essa necessidade de escapar, inerente ao ser humano.

É um final feliz, mas que não é realmente um final. Quando fica claro para o leitor que os personagens preferem encarar a realidade em vez de tentar fugir dela, Kavalier & Clay termina. E fica a lição de tentar fazer a mesma coisa.

Classificação:

4,0

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