CEREBUS # 186
Título: CEREBUS # 186 (Aardvark-Vanaheim) - Revista
mensal
Autores: Dave Sim (roteiro e desenhos) e Gehrard (cenários).
Preço: US$ 2.25 ($2.75 Can.)
Número de páginas: 40
Data de lançamento: Setembro de 1994
Sinopse: Cerebus se prepara para encontrar Tarim, seu deus. E para enfrentar uma guerra de idéias e fé.
Positivo/Negativo: Desfecho do arco Reads, que é a terceira parte da maxi-saga Mothers & Daughters, esta edição é lembrada, dentre tantas outras, pelo fato de apenas cinco páginas serem dedicadas a quadrinhos propriamente ditos. Mais que isso: na seqüência destas páginas, seguem-se laudas e laudas de texto corrido, narrando um episódio da vida de Viktor Davis (um alter ego de Sim, tanto quanto Cerebus o é) sobre o Vazio Feminino e a Luz Masculina.
A partir daí, o limite entre realidade e fantasia se torna inexistente nesta edição histórica do mais emblemático quadrinho independente já lançado no mundo.
Antes, um pouco de história. Era janeiro de 1976 quando o Canadá viu surgir, na pequena Kitchener, o seu filho mais ilustre no mundo dos quadrinhos. Era a primeira edição de Cerebus, que chegava ao público, lançada pela própria editora de Dave Sim, a Aardvark-Vanaheim.
O nome da editora é uma referência ao personagem-título, um porco-da-terra (ou, no original, Aardvark). No início (e durante seus primeiros 20 números), Cerebus ainda não tinha os traços hoje bem conhecidos, num fenômeno parecido com o sofrido pela Turma da Mônica - ou seja, com o tempo, ele foi ficando "fofinho".
Também a temática era diferente no começo: criado como paródia dos quadrinhos de Conan, Cerebus também era um guerreiro. E dos mais encrenqueiros.
Contudo, é notório que, após a sua internação por uso excessivo de LSD e outras drogas, em 1979, Sim teve a idéia luminar de manter, mensalmente, um quadrinho desenhado e escrito apenas por uma pessoa por 300 edições. Levando-se em conta a quantidade de texto produzida pelo autor, a complexidade que suas histórias começavam a ter e a elaboração cada vez maior de seus desenhos, parecia uma missão suicida. E só tenderia a piorar.
Só que a criatividade e a inventividade do autor fizeram o quadrinho tomar um novo rumo a partir do segundo arco de histórias, High Society, no qual os temas políticos e religiosos começam a aparecer (e daí até o fim da publicação) de modo vigoroso e predominante. A partir da edição 65, o desenhista e fotógrafo Gehrard começa a produzir os complexos cenários de Cerebus, tornando-se sempre creditado com destaque em volumes subseqüentes.
Nos bastidores, no entanto, a separação de Sim e sua esposa, Deni Loubert (editora original da Aardvark-Vanaheim), detonou um processo inevitável para o sucesso e a polêmica de Cerebus: a criação de um pólo feminista e de seu oposto, algo como um anti-feminismo.
Cerebus, o personagem, refletia esse anti-feminismo, bem como as idéias de esquerda. No universo dos quadrinhos, no qual todo tipo de crítica é cabível, por que não uma guerra dos sexos (ou dos gêneros, como Sim prefere) para apimentar?
Havia ali um muro. Ser equilibrista e caminhar por cima dele não era tarefa das mais fáceis, mas Sim e a qualidade de seu trabalho, inspirador para algumas gerações de autores, fez isso competentemente.
Mas havia um limite. Das duas uma: ou o equilibrista tropeçaria ou ele decidiria que era hora de romper o limite, quebrar o muro e misturar ficção e realidade. Isto aconteceu na edição 186 da revista.
Assumindo a persona de Viktor Davis, mas também admitindo que era ele mesmo, escancaradamente, no primeiro parágrafo do longo texto de 15 páginas, Sim declara seu desprezo ao feminismo e, em muitos trechos, fica claro que, na sua opinião, as mulheres são parasitas dos homens, nada mais que isso.
O texto, criativo, duro e analítico, lotado de idéias e argumentos (confira a versão em inglês aqui), suscitou os mais diversos comentários e reações no mundo dos quadrinhos. A partir deste momento, houve clara queda de vendas da revista, cuja qualidade estava, em 1994, num de seus pontos mais altos. Tal qualidade, no entanto, não impediu que Sim rompesse com quase tudo e todos, incluindo sua própria família.
Uma das pessoas com quem o autor teve sérios atritos por causa desse texto foi Terry Moore, criador de Estranhos no Paraíso. Ironicamente, esta edição de Cerebus trazia, em sua seção regular de previews de novos artistas, justamente o próprio, com suas musas Katchoo e Francine.
Folhear as páginas de Moore inseridas na edição, após a leitura do texto misógino de Sim, é uma experiência inquietante. E que revela que o autor de Cerebus, um incentivador de artistas que se autopublicam, reconhecia no "pai" de Estranhos no Paraíso um grande criador. Mesmo com todas as desavenças que se seguiriam imediatamente após a publicação desta revista.
Em março de 2004, com um discurso cada vez mais incisivo, Cerebus chegou ao fim de sua longa jornada no prometido número 300, numa edição em que ele finalmente se encontra com seu deus e, ainda assim, se recusa a morrer até o último minuto.
Com um número de fãs talvez menor do que antes do episódio da edição aqui em questão, mas, certamente, fãs leais ao ideal de uma grande história, contada do modo mais honesto possível. Pois, ainda que se discorde do que Dave Sim pensa, da honestidade e da sinceridade dele ninguém pode duvidar.
É por fatos como o ocorrido nesta edição emblemática (e que, em menor grau, estiveram presentes durante toda a publicação da revista) que ela merece ser sempre revisitada. Pois, certas ou erradas, apenas as pessoas com a coragem de iniciar um debate de tamanho grau de complexidade e importância podem se sentir em paz. E Sim deve estar de bem consigo mesmo.
A nós, cabe ficarmos inquietos.
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