Conto de areia
Editora: Pipoca & Nanquim – Edição especial
Autores: Ramón K. Pérez (roteiro, arte e cores), Jim Henson e Jerry Juhl (roteiro original), e Ian Herring (cores) – Originalmente em Jim Henson’s – Tale of Sand (tradução de Marília Toledo).
Preço: R$ 69,90
Número de páginas: 160
Data de lançamento: Março de 2018
Sinopse
Um homem chamado Mac chega a uma cidade do sudoeste norte-americano e é levado a participar de uma estranha e insólita aventura. Então, ele passa a ser perseguido pelo deserto, por um homem misterioso de tapa-olho e feras de proporções inimagináveis.
Positivo/Negativo
“Seria ótimo se tivesse uma canção ou duas...”, foi o que desejou o produtor, marionetista e cineasta Jim Henson (1936-1990), em uma das cartas destinada aos filhos, para o seu funeral. Pediu também que ninguém usasse preto e que uma banda de jazz tocasse When the saints go marching in, famosíssimo hino gospel cujo intérprete mais conhecido foi Louis Armstrong (1901-1971).
Esse é um exemplo para perceber o quanto da música sempre estava presente na vida do artista norte-americano, bem como o audiovisual por meio da TV e do cinema.
Originalmente, o roteiro desenvolvido por Henson e seu parceiro de longa data, Jerry Juhl (1938-2005), que serviu de alicerce para a história em quadrinhos homônima seria para uma produção cinematográfica.
Dito isto, Conto de Areia foi um longa-metragem que nunca viu um fotograma ser filmado. Escrito nos anos 1960 – época em que foi concebido o curta-metragem indicado ao Oscar, Time Piece (1965) – Henson teve outras ocupações posteriormente que alcançaram grande repercussão e sucesso: Os Muppets e Vila Sésamo.
Antes de assumir a direção de longas de fantasia, como O Cristal Encantado (1982) e Labirinto – A Magia do Tempo (1986), este último estrelado por David Bowie (1947-2016) e Jennifer Connelly, Henson fazia experimentações em curtas protagonizados por ele mesmo.
Assim como The Cube (1969), Time Piece é um bom exemplo de como é forte o protagonismo da musicalidade, seja pelas batidas da marreta na pedra, o bombear do coração ou o tique-taque do relógio. Surreal, esse fluxo de consciência não é novidade no cinema avant-garde de obras que vão desde Um cão de andaluz (1929), de Luis Buñuel (1900-1983) e Salvador Dalí (1904-1989), até a filmografia de Peter Greenaway, como A Última Tempestade (1991).
Entender esse lado do criador dos Muppets oferece uma melhor compreensão do Carnaval de “sons”, imagens e cores que é essa frenética adaptação capitaneada pelo quadrinhista canadense Ramón K. Pérez.
Logo no começo, observa-se uma festa no ritmo dos metais. Provavelmente é o jazz de Henson, uma trilha sonora que vai ecoar na cabeça do leitor de qualquer jeito. Se não for pela indicação das notas musicais desenhadas, será pelo ritmo sincopado e de improvisação das ações do personagem principal.
Sem nenhuma explicação racional, a narrativa é assim: uma corrida polirritmia pela própria vida, cruzando um deserto tão vasto e perigoso quanto abstrato e mutável.
A maioria das numerosas situações que desfilam nas páginas da obra gera um aspecto nonsense muito ligado aos projetos dos bonecos criados e manipulados por Henson, bem como as animações televisivas que se passam em cenários semelhantes.
Apesar de poucas falas, o diálogo sobre o objeto inicial (roteiro original) e o produto final (história em quadrinhos) é travado por todo o projeto gráfico, desde o formato do álbum imitando um caderno de notas – com capa dura, bordas arredondadas e marca-página de elástico –, passando pelas guardas com a foto de Jim Henson atrás das câmeras e os personagens sob os holofotes no traço de Pérez, até o conteúdo textual do roteiro enxertado entre as cenas.
Preste atenção que algumas descrições são “solidificadas” nas sequências, sendo usadas também como metáforas. Na primeira e na última página da HQ, as palavras do roteiro original vão desvanecendo para se transformar nas cores e traços. Inclusive, são nesses fragmentos que descobre-se o nome do protagonista, Mac.
Em determinado momento de confusão, por exemplo, quando há um tumultuado e caótico quebra-quebra de saloon, pedaços do roteiro aparecem descrevendo a situação e figurando a desordem da cena.
Em contrapartida, quando há um verdadeiro duelo entre os antagonistas, a opção foi colocar todo o espaço em branco, enfatizando o suspense e o foco que a cena exige.
Neste aspecto, é louvável apontar a fidelidade gráfica da versão nacional da editora Pipoca & Nanquim, também pelo zelo do letrista e diagramador Arion Wu.
Curiosamente, apesar de ser muito “sonoro”, o autor da adaptação optou por não enfatizar tanto as onomatopeias ao longo da narrativa. O recurso existe e faz parte das composições, mas de forma comedida e, às vezes, inexistente (como em algumas explosões do álbum).
Referências cinéticas e sonoras, como corridas automobilísticas, radiolas, clubes de jazz, estouro de manadas, tiroteios, perseguições de árabes e jogadores de futebol americano surgem como passe de mágica, como a edição frenética de Time Piece, umas das inspirações para Pérez.
Outro recurso importantíssimo em questão narrativa é o uso das cores. Não seria risco algum afirmar que tal paleta se encontra bem mais evidente e demarcada do que em uma possível versão cinematográfica.
São composições que podem se destacar por ser monocromáticas, criando um clima hiperrealista, ou até pinceladas de aquarela acrescentando um requinte em determinadas passagens.
Em entrevista para o site Vitralizado, Ramón K. Pérez explicou que os trabalhos de Henson para o audiovisual dependiam muito do som para expressar emoções e destacar cenas. Por ser uma linguagem “silenciosa”, o quadrinhista optou pelo que batizou de “sinfonia de cores”, sua singular trilha para despertar esses sentimentos.
Com layouts predominantemente horizontais, que reforçam a dinamicidade panorâmica enquadrada no cenário desértico e também no cinema, as imagens chegam a saltar das páginas pela tridimensionalidade de domínio da profundidade de campo do autor.
Quanto ao sentido racional das alegorias jogadas nessa corrida absurda, análises interpretativas mais profundas podem surgir nas eventuais releituras que se poderá fazer. Não cabe aqui ser uma bússola para nortear os significados e lirismos, já que igualmente haveria outras possibilidades caso a feitura do projeto fosse realizada por outro artista.
O que significa a clássica femme fatale hollywoodiana, ou os tubarões no encalço do protagonista, ou ainda a ansiedade frustrada de acender um cigarro (outra marca dos filmes antigos) cabe ao leitor julgar. Essa é a graça.
Como consequência, Conto de Areia ganhou três merecidos prêmios Eisner em 2012 – Melhor Álbum Gráfico, Desenhista e Design de Publicação – e dois prêmios Harvey – Melhor Álbum e História.
A edição nacional tem formato 20 x 27,5 cm, papel off-set com excelente gramatura e impressão, além de extras como estudos de personagens, biografias dos envolvidos, introdução da historiadora Karen Falk e posfácio de Lisa Henson, filha do criador dos Muppets, supervisora do projeto e diretora-executiva da The Jim Henson Company.
Assim como no cinema acontecem erros de continuidade, em poucos momentos Pérez esquece um dos sapatos rasgados por um tubarão. Mas é uma gota no oceano dentro dessa onda de abstracionismo constante.
No final das contas, Conto de Areia é sobre buscas, no plural, de uma pessoa que poderia muito bem ser você ou eu, o leitor/expectador/ouvinte. Uma maneira de celebrar a vida, mesmo com todos os obstáculos que ela possa vir a ter.
Da mesma forma da iniciativa de seus desejos fúnebres, redigidos anos antes da sua morte precoce, aos 53 anos, Jim Henson sempre se manteve como um otimista, que não queria entristecer os outros, mesmo após a sua partida. Esse é um dos seus maiores roteiros redigidos. Não tem pra onde correr.
Classificação:
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