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Gypsy Omnibus

Editora Insight Comics – Edição especialU$ 60,00368 páginasLançado em dezembro de 2018
Thierry Smolderen (roteiro) e Enrico Marini (arte) – Originalmente em Gipsy Intégrale 1 (L’Etoile du Gitan, Les Feux de Sibérie, Le Jour du Tsar) e Gipsy Intégrale 2 (Les Yeux Noirs, L’Aile Blanche, Le Rire Aztèque) – tradução de Joe Johnson e Naomi Colmer.
12 março 2021

Sinopse

Em um futuro pós-apocalíptico, as mudanças climáticas ocasionaram uma pequena Era do Gelo no hemisfério Norte, enquanto a camada de ozônio é fina como nunca no hemisfério Sul.

As viagens aéreas foram banidas e, para resolver a logística mundial, uma grande autoestrada, a Circumpolar Tricontinental (C3C), foi construída, ligando África, Eurásia e Américas, com uma rede capilar de rodovias menores conectando o mundo a partir de si.

Buscando sobreviver ao longo desses corredores de asfalto, o carismático Tsagoi, o Cigano, dirige seu caminhão, a Estrela, entre territórios povoados por piratas, guerrilheiros, nações em conflito, sociedades secretas, governantes corruptos, maldições indígenas e uma multinacional que domina todo o transporte terrestre.

Positivo/Negativo

Há muito o que se dizer sobre a saga do Cigano, criado pela dupla Smolderen e Marini, retomando a parceria inaugurada nos Dossiês de Olivier Varèse. Dois conceitos, porém, se sobressaem em meio ao mar de observações que podem ser feitas: oportunidades perdidas e promessas não cumpridas. Começar pela parte editorial ajuda a destrinchar melhor tudo.

O encadernado da Insight reúne os seis álbuns franco-belgas, publicados ao longo de nove anos e três editoras diferentes, usando como modelo os integrais em dois volumes da Dargaud. O acabamento é extremamente luxuoso e de bom gosto. O papel e a impressão têm altíssima qualidade. Capa (dura) e contracapa são todas brancas, apenas com o símbolo do personagem em baixo relevo prateado adornando a fronte do álbum, com desenhos em soft touch de flocos de neve nas extremidades. Tudo isso protegido por um slipcase transparente, adornado por uma ilustração em nanquim exclusiva de Enrico Marini para esta edição.

O sumário, título, código de barras ficam em um papel avulso, colado fracamente sobre o case e que pode ser retirado e guardado sem danos. Há um prefácio bastante interessante escrito pelo artista norte-americano Dan Panosian, que se revela fã de carteirinha da série, e sketches diversos de Marini, no final.

Seria um produto editorialmente perfeito, não fossem dois erros. O primeiro (gravíssimo), no último álbum, que se passa na América Latina. A letra ñ, do alfabeto espanhol, presente várias vezes ao longo do texto (na palavra señor, por exemplo) simplesmente não aparece, deixando vários buracos em certas palavras. Provavelmente, porque utilizou-se uma fonte americana, que não engloba essa letra e a revisão simplesmente ignorou, o que é inaceitável.

O segundo (subjetivo) é que, ao juntar-se os seis álbuns da série em um único volume, cria-se a sensação de subir uma montanha belíssima para, subitamente, descobrir-se despencando de um precipício, sem amortecimento algum até o chão.

Gypsy, como série, tem duas metades bem demarcadas. Nos primeiros três volumes, os autores constroem uma trama interessante, um mundo original, personagens carismáticos. Há uma união de bom nível entre a mitologia estabelecida pelo texto e a arte em estilo mangá, com toques europeus.

Os tomos entregam uma bela distopia em meio a veículos enormes, megacorporações, intriga política e violência. Aqui, há todo o sopro das referências – Mad Max, 007 e Akira gritando mais alto –, sem ser, em nenhum momento, derivativo destas. O que é louvável.

A trilogia inicial apresenta uma trama coesa, construindo-se um épico que, sim, tem todo o toque de humor, sexualidade e exageros típicos de um shonen ou aventura de James Bond, mas sem perder a mão ou insultar o leitor (exceto por um deus ex machina paquidérmico no segundo álbum e duas cenas de nudez e sexo com personagens adolescentes). Apresentam-se vários coadjuvantes e subtramas e, ao encerramento do primeiro arco, fica-se ávido para ver como vai tudo evoluir e terminar.

A partir do quarto álbum, no entanto, os autores jogam tudo às favas. A série vira, simplesmente, uma paródia de si mesma. Esqueça tudo de interessante que foi apresentado na primeira trinca, pois nada será desenvolvido.

Tsagoi, que, apesar de ser um brutamontes, tinha todo um passado dramático e pesado, passa a ser apenas o filho cigano de James Bond, talvez sobrinho do Rambo. O relacionamento com sua irmã, Oblivia, e as consequências do final do arco anterior sobre a moça, praticamente não voltam a ser abordados, ainda que ela figure proeminentemente na quinta história.

A Feiticeira e a sociedade secreta voltam a aparecer, mas não são aprofundadas. A megacorporação Selmer e seus coadjuvantes, a líder atual e sua cônjuge, a herdeira perdida e Big Ben, não serão desenvolvidos e não irão ter qualquer desfecho. Basicamente, entregam três tramas esquecíveis, pouquíssimo conectadas entre si.

Mesmo o quinto volume, o melhorzinho dos últimos, está bem abaixo do que o primeiro arco entrega e não leva a nenhum gancho ou consequência para o desfecho da hexalogia.

A impressão que a dupla criativa passa é de simplesmente ter ficado com preguiça de desenvolver o projeto na metade. A partir daí, apenas quis gerar o máximo de situações do mais simplório “massaveísmo jamesbondiano” que marcou o pior dos comics americanos e filmes de 007 nos anos 1990.

Claramente, o roteiro de Smolderen foi feito querendo divertir-se de maneira despretensiosa, pensando em várias maluquices exóticas, recheadas de clichês de ação e sexo para que Marini pudesse, também, apenas se divertir na arte. Sempre que encontra uma situação limite complexa de resolver, lança mão de um deus ex machina mais safado que o outro.

Seria até uma proposta honesta, pensando-se em entretenimento descerebrado que pode agradar em alguns momentos. Mas, ao comparar-se com que vinha se desenvolvendo e as expectativas criadas, tornou-se dissonante e decepcionante.

Do ponto de vista exclusivamente da arte, este omnibus é interessante aos fãs de Enrico Marini. Pode-se observar a evolução do seu estilo, inicialmente muito influenciado por mangakás, especialmente Katsuhiro Otomo. Ao longo da segunda metade do encadernado, vê-se a transição gradual para o seu traço atual, muito mais pessoal e característico, atingido de vez no último volume.

Suas aquarelas, sempre aplicadas diretamente sobre o papel do desenho, de modo artesanal, já mostravam sua tendência de delimitar os ambientes por uma cor-tema, ainda que de maneira mais discreta e com uma paleta bem mais reduzida, no início.

A narrativa também progride, e vai se tornando muito mais dinâmica e cinematográfica, com os planos grandiosos, câmeras abertas e ação progressivamente mais fluida, que se tornaram sua marca.

O grande ponto negativo do desenho fica no abuso da sexualização feminina, que, mesmo presente desde a primeira parte,  aumenta progressivamente até bater no teto, ao ponto de quase todas as mulheres da segunda metade serem ultrassensuais e servindo como uma grande vitrine de bundas, coxas, vulvas e seios, sempre pouco ou nada cobertos.

Como curiosidade, há alguns personagens que surgem ao longo dos álbuns que são muitíssimo parecidos com outros que Marini desenharia em obras posteriores, praticamente um autoplágio (o primo de Tsagoi e Drago de Predadores; a Feiticeira e Mejäi de O Escorpião).

A síntese mais coerente para a composição de Gypsy Omnibus seria dizer que contém uma série principal interessantíssima, mas órfã de um desfecho real e coerente, seguida por três contos de fan service datadíssimos, típicos daqueles feitos muitos anos após o final de uma boa história, dando vislumbres dos personagens que se leu e se apegou, e fazem pensar: “Nossa, como os autores perderam a mão depois de tanto tempo?”.

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