Jeremias - Pele
Editora: Panini Comics – Edição especial
Autores: Rafael Calça (roteiro) e Jefferson Costa (arte e cores).
Preço: R$ 31,90 (capa cartonada) e R$ 41,90 (capa dura)
Número de páginas: 96
Data de lançamento: Abril de 2018
Sinopse
Jeremias é um dos melhores alunos da classe. Tem vários amigos e uma rotina muito feliz ao lado dos pais. Até o dia em que ele encara o preconceito por causa da cor da sua pele.
Positivo/Negativo
A Constituição do Brasil aprovada em 1988 categorizou a punição do racismo no País com prisão inafiançável. A repreensão no papel é rígida, porque vivemos um processo racista herdado de quase quatro séculos de escravidão.
Pior ainda: é um processo “velado”, por vezes hipócrita e que também pode partir de mecanismos como a internet e suas redes sociais, com a sensação confortável de falso anonimato do praticante de ódio às raças.
O cerne da questão é bem mais complexo e não caberia em uma análise mais detalhada por aqui, mas um dos problemas é que muitos se acham “no direito” de paradoxalmente ter a liberdade de expressar e “naturalizar” esse ódio, por vezes disfarçado de chacota ou aceitação apenas do padrão imposto.
A capacidade de perpetuar os marcadores sociais da indiferença – consciente ou inconscientemente – é um dos grandes problemas no Brasil. E não só pela questão da raça, mas também de gênero, geracional, ideológica, regional ou religiosa.
Nesse contexto, recentemente foram publicados por aqui quadrinhos com participação de autores negros que tocam nessa reflexão social, cultural e histórica: A Marcha (Nemo), um recorte biográfico de John Lewis, figura do movimento dos negros pelos direitos civis nos Estados Unidos; e Angola Janga (Veneta), versão do quadrinista Marcelo D’Salete sobre a repressão ao Quilombo de Palmares.
Em relação aos personagens nascidos nas histórias em quadrinhos brasileiras, a figura do negro raramente era criada ou protagonizava uma revista, tira ou álbum. Apesar de ser um dos primeiros personagens criado por Mauricio de Sousa, em 1960, Jeremias praticamente nunca saiu da função de “eterno coadjuvante” (para não dizer “figurante”).
As exceções à regra foram o Pelezinho, baseado no “Rei do futebol” Edson Arantes do Nascimento, que teve tiras de jornal e revista própria entre os anos 1970 e 80, e os também futebolistas Ronaldinho Gaúcho e Neymar Jr.
Agora, depois de todos esses anos após sua criação, Jeremias enfim tem sua estreia em um título próprio, no 18° álbum do selo Graphic MSP, no qual artistas nacionais colocam suas ideias e traços próprios para novas versões dos personagens da Turma da Mônica.
Para esta tarefa, foram escalados os artistas Rafael Calça e Jefferson Costa, que trabalharam juntos na HQ Feliz Aniversário, Feliz Obituário, lançada em 2005 na coletânea Front # 16 (Via Lettera).
À primeira vista, a capa pode parecer simples, mas ela diz muito com o ângulo altivo e austero do personagem, visto de baixo para cima. Em contra-plongée, Jeremias ganha poder e vira um gigante metaforicamente, ficando acima de qualquer pensamento ou atitude que separam as raças por considerarem umas superiores a outras.
Esses ângulos e perspectivas são muito bem trabalhados ao longo da história. Basta ver como o protagonista fica diminuto quando o racismo é praticado ou quando ele se sente pequeno como consequência disso.
No começo, nem mesmo a penumbra de um beco – caminho após uma sessão de cinema do filme Guardião da Noite (alguém aí se lembrou do Batman?) – espanta todo o sentimento de “comercial de margarina”, no qual tudo está perfeitamente bem.
Esse herói de gibi dentro do gibi funciona como um dos estopins da conscientização de Jeremias sobre a questão da representatividade. Assim, os autores chamam a atenção para o fato de que os negros não “nascem” ou são educados com essa compreensão, muitas vezes ignoradas pelo racismo velado ou por uma superproteção dos pais, por exemplo.
Outros modelos preconceituosos estão no padrão de beleza homogêneo das vitrines e nos gibis lidos por Jeremias, quando um coadjuvante negro é tachado de “pequeno malandro”, como se fosse um elogio e não uma depreciação.
Algo bastante comum também é tentar contornar equivocadamente atitudes racistas justificando-as ou amenizando-as com a comparação mais próxima do branco: você não é negro; é “moreno”.
Acertadamente, o Jeremias que se vê em Pele não é o dos gibis. É o Jeremias que pode ser chamado de Rafael Calça ou Jefferson Costa, exemplificando situações que podem muito bem ser vistas no cotidiano, seja tomadas por uma parte dos policiais ou até inconscientemente pelos próprios professores.
Voltando à capa do álbum, ela seguiu os moldes do teaser divulgado inicialmente e sempre colocado na primeira página de cada GMSP. O rosto do personagem principal sempre está oculto, como estratégia de marketing, mas percebe-se a mesma altivez e austeridade quando ele coloca o boné, um importante simbolismo na trama.
Ao mesmo tempo em que qualquer pessoa pode sonhar ou almejar as “profissões incomuns”, também se enaltece as mais comuns e que a sociedade em geral não enxerga como importantes ou “nobres”, mas são vitais para ela própria.
Outra ótima saída foi aproveitar personagens já estabelecidos nesse universo, como os vistos na saga do Astronauta, de Danilo Beyruth. Inclusive, esse tema e o do gibi do herói favorito de Jeremias têm um arremate bastante reflexivo para os dias atuais.
No final, talvez muitas das crianças na sala de aula do protagonista não entendam o ponto de vista do colega, mas ele deve ser dito, ouvido e exposto. Cabe ao leitor entendê-lo e abraçá-lo.
Mais do que achar os famosos personagens da Turma da Mônica nas páginas de Jeremias – Pele é interessante perceber os tristes easter eggs da pessoa olhando atravessado a família negra saindo do cinema, ou da menina que coloca ostensivamente a bolsa colada ao peito quando passa por suspeitos (leia-se “negros”) na rua.
Como nunca se viu antes nas revistas de Mauricio de Sousa, muitos dos insultos e atitudes no álbum são bem pesados, porém não são meramente gratuitos ou com a intenção de serem cômicos: há um propósito em todos eles, o que pode abrir os olhos de leitores de todas as idades.
Dono de um traço estilizado, Jefferson Costa possui a mesma dinâmica, força e energia de um soco que é retratado na obra. Perceba como o desenhista usa as cores em favor da narrativa, além das sombras dos personagens, que não são apenas uma composição de cena, e recursos interessantes como o aumento das letras no balão quando se aumenta o som da TV.
A edição da Panini tem duas versões (capa dura e cartonada sem orelhas), formato 19 x 27,5 cm, papel couché de excelente gramatura e impressão, além de extras como esboços, curiosidades, processo criativo passo a passo, versões de capas e biografia dos autores.
Não é só acerca do racismo e do preconceito que trata a obra de Calça e Costa. No final das contas, é o que você pode ver, o que você pode fazer, o que você pode sonhar e o que você pode ser – nem melhor e nem pior que o seu próximo.
Um passo importantíssimo para a trajetória de Mauricio de Sousa, Jeremias – Pele é um grão de areia no universo que pesa uma tonelada de importância para uma batalha desigual que deve ser travada com a cabeça. Aquela cabeça com o boné que simboliza o passar da sabedoria dos que vieram e sofreram antes a mesma batalha. E de grão em grão...
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