Luzes de Niterói
Editora: Veneta – Edição especial
Autor: Marcello Quintanilha (roteiro e arte).
Preço: R$ 109,90
Número de páginas: 232
Data de lançamento: Fevereiro de 2019
Sinopse
Nos anos 1950, as aventuras (e desventuras) do jovem Hélcio, inconsequente e promissor “beque” direito do time de futebol Manufatora Atlético Clube, o Cantusca – emblemática equipe operária do bairro Barreto, em Niterói, e do seu amigo Noel, portador de uma severa deformidade física.
Por tabela, os dois se envolvem em pescaria com dinamite, comércio para praia de nudismo, tempestade em plena Baía de Guanabara, rusgas, atrasos para concentração, um treinador linha-dura, um jogo contra o Vasco da Gama de Bellini e uma noite de baile.
Positivo/Negativo
Se a carreira de Marcello Quintanilha fosse uma partida, Luzes de Niterói seria mais um golaço que o quadrinhista anotou em uma partida (de muitas outras da sua trajetória) que começou há duas décadas, em 1999, quando foi publicado o seu primeiro álbum pela Conrad, A fealdade de Fabiano Gorilla, quando ainda assinava Marcello Gaú.
Igualmente baseado no pai do autor, Hélcio Carneiro Quintanilha, A fealdade... tem como pano de fundo o turbulento dia em que o então presidente Getúlio Vargas se suicidou, em 1954, episódio que também é relembrado en passant nesta nova obra. Em virtude da tragédia, o promissor teste para o Fluminense foi cancelado.
Essa mesma história – com a diagramação remontada – também se faz presente na coletânea Almas Públicas, também lançada pela Conrad, em 2011.
Agora, a viagem no tempo é bem mais longa. Quintanilha leva o leitor para os anos 1950, de maneira bem orgânica. Assim como há um sotaque nordestino legítimo no premiado Tungstênio, Luzes de Niterói mergulha nas gírias e no coloquialismo honesto dos seus personagens, o que faz o leitor sentir que cada um tem a sua “voz” particular.
Nesta questão, há o cuidado de ter notas de rodapé explicando cada expressão, mesmo que algumas não precisassem tanto, já que poderia ser deduzidas pela contextualização (apesar de que, nos dias atuais, os leitores mais jovens terminem precisando dessa inclusão).
Centrada nas figuras de Hélcio e Noel, a HQ pode ser mapeada como uma espécie de “colcha de retalhos” de causos envolvendo a dupla. Há visíveis recortes, como o autor faz nas suas coletâneas independentes, mas aqui todos são protagonizados pelos dois, privilegiando o elo de amizade entre o atleta e o deficiente físico.
Pegando um ponto de partida que também se encontra em Tungstênio, o autor aproveita o planejamento de faturar uma grana extra por meio da pesca ilegal com bananas de dinamite para se aprofundar no seu personagem principal.
Cada mergulho de Hélcio é também uma imersão nas suas frustrações, acertos, aspirações e reflexões, todas acompanhadas com a analogia da pesca por mãos nuas.
Por falar em nudismo, ele surge também em tensos momentos de humor, vide a passagem deles na Ilha do Sol, a pioneira colônia de naturalismo coordenada pela vedete, escritora e feminista Luz del Fuego (1917-1967).
Em plena Baía de Guanabara, com sua narração que valoriza os detalhes, ângulos, planos e contraplanos, Quintanilha apresenta o momento mais retesado e forte da obra, que culmina com um inquieto e melancólico silêncio. Nesse ponto, apenas com imagens, é escancarado todo um discurso que permeia a sociedade brasileira, de ponta a ponta do seu “gramado”, independentemente se o ano for 1500, 1950 ou 2019.
Como um elástico (que também é usado para designar um drible), o autor brinca com o tempo presente nos seus quadrinhos, esticando e encolhendo como bem entender. A sequência do mar e o embate do Cantusca de Hélcio contra o Vasco do zagueiro Bellini são grandes exemplos desse poder de compressão e dilatação narrativo.
Para quem gosta de futebol, há um dilema que era datado no jogo (evidenciando a época): a função de “beque” direito era o equivalente ao lateral-direito dos dias de hoje, porém mais preso ao sistema defensivo da equipe, o que provoca dilemas em Hélcio para desespero do seu treinador.
Na última parte da história, o que parece trivial tem seus aspectos narrativos singelos e delicados, novamente fazendo com que apareçam os costumes/preconceitos do período e tendo o silêncio novamente como protagonista.
Destaque para as canções Pra casa eu não vou (de Antônio Carlos Souza e Nelson Souto), popularizado na voz de Sílvio Caldas (1908-1998); e Estrela do mar (de Paulo Soledade e Marino Pinto), imortalizada por Dalva de Oliveira (1917-1972). Interessante catar essas músicas para servir de trilha sonora em determinados pontos.
No avançar das páginas, observa-se todo o recorte do desenrolar da relação de amizade entre Hélcio e Noel, como se eles fossem jogadores que se comunicam em campo só pelo posicionamento, jogada ou olhar. Uma cumplicidade que visivelmente é duradoura.
O traço de Quintanilha está bem mais estilizado do que nas obras anteriores, inclusive Talco de Vidro. Essa estética serviu para casar bem com as cores, com uma paleta mais limitada e funcional para o diálogo narrativo.
A edição da Veneta tem capa dura, lombada arredondada, formato 17 x 24 cm, papel couché de alta gramatura e excelente impressão. O projeto é o primeiro da editora submetido a um financiamento coletivo, via Catarse. Há um bom trabalho de revisão, faltando apenas algumas vírgulas e uma nota de rodapé de uma gíria que chegou a ser indicada.
Marcello Quintanilha, sem dúvida, é um dos grandes autores do País e veste a camisa da tal brasilidade nata. Na escalação desse time, além dele, estarão sempre presentes craques como o saudoso Flavio Colin (1930-2002) e André Diniz.
Luzes de Niterói é mais um “gol de placa” nesse gramado.
Classificação:
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