Minha coisa favorita é monstro – Livro Um
Editora: Quadrinhos na Cia. – Edição especial
Autora: Emil Ferris (roteiro e arte) – Originalmente em My favorite thing is monsters (tradução de Érico Assis).
Preço: R$ 134,90
Número de páginas: 416
Data de lançamento: Abril de 2019
Sinopse
Com o tumultuado cenário político da Chicago dos anos 1960 como pano de fundo, Karen Reyes é uma garota de dez anos com traços lupinos e completamente alucinada por histórias de terror.
Quando sua bela e enigmática vizinha do andar de cima – Anka Silverberg, uma sobrevivente do Holocausto – é encontrada morta, Karen inicia uma investigação própria, descobrindo histórias de um elenco bizarro e sombrio de personagens suspeitos: seu irmão Dezê, convocado a servir nas forças armadas e assombrado por um segredo do passado; o marido de Anka, Sam Silverberg, também conhecido como o jazzman “Hotstep”; o mafioso Sr. Gronan; a drag queen Franklin; e Sr. Chugg, o ventríloquo.
Positivo/Negativo
A peculiaridade desta obra já está estampada na capa: os traços meticulosos de hachuras que ganham texturas ressaltam a cor azul do instrumento igualmente incomum que a autora imprime também no miolo, por meio de canetas esferográficas.
O formato narrativo também segue o mesmo padrão inusitado, apontando como uma possível herança de quando a quadrinhista trabalhava como designer. As páginas emulam folhas de cadernos escolar, pautados com margens padronizadas. É por elas que a protagonista/autora faz uma espécie de diário, cheio de desenhos e anotações.
Pra início de conversa, este livro um arrebatou prêmios dos dois lados do Oceano Atlântico. Em 2018, ganhou três Eisner (Melhor Roteirista/Desenhista, Colorista e Álbum Gráfico Inédito), nos Estados Unidos, bem como o Fauve d’Or no Festival Internacional de Angoulême, na França. Se fosse um filme, seria o Oscar da Academia de Hollywood e a Palma de Ouro em Cannes, respectivamente.
Além dos supracitados, Minha coisa favorita é monstro foi indicada ao prêmio Hugo como Melhor História Gráfica (inexplicavelmente perdeu para Monstress) e ganhou o Ignatz na categoria Graphic Novel Excepcional.
Chamou a atenção de Art Spiegelman, autor de Maus, cuja opinião sobre Ferris é colocada na capa. A descrição da orelha chega a comparar o impacto do álbum com a maior obra do quadrinhista, mas, salvo os paralelos temáticos com o Holocausto (coadjuvante aqui) e a autopromoção, os choques são bem diferentes.
Observando após suas premiações e reconhecimentos, assim como várias outras autoras desconhecidas que querem iniciar sua carreira, nem parece que este projeto foi rejeitado por 48 editoras, vindo a ganhar vida originalmente pela Fantagraphics, em 2017.
Investigando as origens de Emil Ferris, nota-se que ela também nasceu em Chicago e na mesma década “documentada” no diário da Karen Reyes – que tem os mesmos gostos da autora. Ambas viveram no bairro de Uptown, lendo revistas em quadrinhos de terror, bem como presenciando a tela da tevê servir de vitrine para os monstros clássicos daquele período, através dos filmes B.
A arte por si só é impressionante, porém o mais assombroso são os bastidores revelados pela própria quadrinhista, em diversas entrevistas quando lançou sua obra de debute. Não foi bala de prata, estacas de madeira ou maldição secular que fez a artista titubear, há 18 anos. Foi algo bem menor, quase insignificante e que, geralmente, não mete medo em ninguém.
Anos antes de rabiscar com esferográficas o que seria esta HQ, em 2001, Ferris foi picada por um mosquito que tinha o Vírus do Nilo, um acontecimento bem diferente do qual a protagonista do gibi esperaria: ser mordida por um monstro e consertar a sua vida.
Em 80% da população, a picada não significaria nada, mas ela estava no outro lado da porcentagem. Depois de semanas em coma, despertou paralisada da cintura para baixo. A Febre do Nilo Ocidental que contraiu também incapacitou a mão direita que desenhava. Com uma obstinação maior que a do Dr. Victor Frankenstein em criar vida, a artista reaprendeu a desenhar usando como reabilitação suas canetas Bic, marcadores Flair e a dor crônica da enfermidade.
O resultado do tour de force de seis anos foi a criação deste diário ilustrado de uma garotinha com feições lupinas de 10 anos, de ascendência mexicana, irlandesa e indígena, e que mora com a mãe e o irmão mais velho. Solitária e tão indesejada quanto os monstros que admira, Karen sofre bullying por ser “esquisita”.
Esse e outros sentimentos e estados de espírito da protagonista servem para expor um catálogo de assuntos tão diversificados quanto as criaturas e situações macabras vistas nos filmes e comics de terror.
Sua rotina e a do bairro de Uptown são alteradas quando sua vizinha chamada Anka Silverberg – uma judia que fugiu do nazismo – é encontrada morta. Esse acontecimento serve como fio condutor para cavoucar mistérios e segredos, inclusive da família de Karen.
Por ser um caderno de confidências, muitos dos recursos usados nos quadrinhos são utilizados, como a sobreposição, as calhas, recordatórios e balões.
Minha coisa favorita... é uma leitura lenta, devido à densidade da estrutura quase como um romance epistolar. Mais uma faceta da autora, que não se contentava em cuidar da sua filha de seis anos na época da doença e aprender a desenhar novamente, foi buscar também um mestrado em Escrita Criativa.
O que se pode observar é um universo que “documenta” em tom confessional (e simbólico) o deslocamento social e a sexualidade, ao mesmo tempo em que presta homenagens ao gênero de terror (cada “capítulo” é aberto por uma capa de gibi, no melhor estilo Cripta do Terror, da EC Comics) e mantém o sinal verde para as camadas mais surreais e fantásticas.
Sem contar também que boa parte de suas páginas retrata uma confissão dentro de uma confissão, com o testemunho gravado da falecida Anka, revelando os dramas de ser uma mulher judia nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.
Do mesmo jeito que o vestido vermelho da menininha tem uma carga dramática e simbólica no preto e branco de A lista de Schindler (1993), filme de Spielberg, o aspecto azulado da pele da vizinha morta dialoga com o que é revelado.
Esse lado mais detetivesco – também presente no cinema, TV e quadrinhos – a autora vai jogando muitas pistas (verdadeiras e falsas) que não tem pressa em explorá-las, o que faz o leitor manter o interesse pelos mistérios. Em determinada cena, aparece a palavra MacGuffin, termo cinematográfico popularizado por Hitchcock (1899-1980) que serve como dispositivo de enredo, algo importante para o personagem, mas não para a trama em si.
Engana-se quem pensa que as anotações e desenhos abordam mais o lado racional, pelo menos em algumas sequências mais alegóricas. Afinal, é um gibi que tira o chapéu deerstalker para o terror.
Um exemplo é a aparição do fantasma de Kate Warne (1833-1868), a primeira detetive mulher que trabalhou em vários casos importantes durante e após a Guerra Civil norte-americana. Curiosamente, ela é chamada no álbum de “Warn”, mesmo equívoco que está gravado na sua lápide, no Cemitério de Graceland, em Uptown.
O traço transita entre a caricatura e o hiper-realismo, entre os esboços apressados e excesso de dedicação na construção gráfica de um personagem ou cena, muitas vezes coerente com o registro in loco. Um exemplo desse último é visto em uma página inteira com um detalhado hambúrguer com fritas. A justificativa aparece quando a personagem usa seus dotes artísticos durante o jantar para parecer que está distraída e passar despercebida durante a conversa entre a sua mãe e o seu irmão Dezê.
Assim como aqueles desenhos feitos a esmo despretensiosamente nos espaços em branco do caderno, atente para outros simbolismos que Emil Ferris espalha pela sua narrativa. Desde o nome de um filme na marquise do cinema, passando por decorações do Dia dos Namorados, até a causa da morte da suposta suicida.
A obra sempre vai passeando por uma pluralidade de aspectos, do mesmo jeito que o traço de esferográfica tem as cores e auxílio das hidrográficas. Colocam-se na berlinda questões sexuais e sociais como estupro, prostituição, pedofilia e racismo.
Em determinada sequência, Ferris se apropria da mitologia da Medusa para fazer paralelos sexuais e, ao mesmo tempo, uma crítica ao patriarcado.
Sem preconceitos, a autora passeia pela cultura pop, cult e underground, citando O Poço e o Pêndulo (1961), longa de terror dirigido por Roger Corman, “pai dos filmes B”, e estrelando Vincent Price (1911-1993); da mesma forma que oferece lições de História da arte com emulações de Johann Heinrich (1741-1825), Kitagawa Utamaro (1753-1806), Eugène Isabey (1803-1886) e Georges Seurat (1859-1891), dentre outros.
A quadrinhista faz do quadro O velho guitarrista cego (1903), de Pablo Picasso (1881-1973), um dos belos momentos fora do didatismo oferecido pelo Dezê, que também mostra outro aspecto da arte representado no seu corpo tatuado.
As variações usando a arte “clássica” em si lembram o que a Alison Bechdel faz em Fun Home com relação à literatura para enriquecer a narrativa. Não por acaso, Bechdel assina a quarta capa de Minha coisa favorita é monstro.
Infelizmente, como aspecto negativo, em alguns casos a disposição do texto e balões não correspondem a uma coerência espacial na página, talvez pela inexperiência da autora na linguagem (ou até sendo de propósito, quem sabe). O leitor vai pelo caminho que sabe ser o mais coerente para a ordem de leitura, mas depois percebe que terá de reler, pois a disposição está em outra ordem.
A belíssima edição em brochura do selo Quadrinhos na Cia. possui formato 20,6 x 26,7 cm, capa cartonada com orelhas, papel off-set de boa gramatura e impressão. Tem alguns escorregões, como falta de vírgulas, um uso do "onde" errado e um “depepcionada”.
Um destaque editorial que deve ser ressaltado aqui é o trabalho de reconstituição de fontes e adaptação de artes para o português, feito pela dupla Américo e Jessica Freiria. São letras baseadas no original à mão, hachuras e retoques que enriquecem os pormenores, como se, espantosamente, todo o trabalho já fizera parte desde o início.
Com um bom gancho no final, o derradeiro livro dois de Minha coisa favorita é monstro tem previsão de lançamento para 2020 nos Estados Unidos.
Na quase “biografia emocional” de Emil Ferris, a ideia de monstruosidade vai além das presas sedentas do vampiro, das milenares ataduras do faraó mumificado, da criatura feita de pedaços de corpos ou do peludo ser que uiva para a lua.
A bala que mata um líder negro, o recrutamento para uma guerra do outro lado do mundo, a objetificação da mulher, a intolerância social, a discriminação sexual e tantas outras problemáticas que ferem a razão e os princípios morais podem ser definidas como monstruosas e tão atuais quanto nos anos 1960. E assustam milhões de vezes mais.
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