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The Mystery Play

17 março 2014

The Mystery PlayEditora: Vertigo / DC Comics  – Edição especial

Autores: Grant Morrison (roteiro), Jon J. Muth (arte) e Todd Klein (letras).

Preço: US$ 9,95

Número de páginas: 80

Data de lançamento: Janeiro de 1994

Sinopse

A pequena vila de Townely retomou uma velha tradição medieval de encenar episódios da mitologia judaico-cristã. Entretanto, a primeira apresentação é interrompida pelo assassinato de um dos atores principais: Deus.

A partir daí, começa uma investigação surreal, capitaneada pelo misterioso detetive Frank Carpenter. A busca pelo criminoso passará pelos sombrios bastidores da política e sociedade de Townely, revelando perturbadores aspectos e segredos de seus habitantes e do próprio investigador.

Positivo/Negativo

The Mystery Play pode decepcionar o leitor. A obra apresenta-se como uma história de mistério e o que se espera é que, após uma investigação entremeada de boas doses de intriga, suspense e ação, a identidade do criminoso seja revelada de maneira surpreendente, lógica e satisfatória.

Não é o que acontece aqui. Quando se chega à última página, a identidade do assassino não é revelada. Pelo menos, não explicitamente.

Mais: o clímax da trama é marcado por um evento completamente nonsense. Trata-se da literal crucificação do detetive Frank Carpenter e de sua aparentemente impossível “fuga”.

Como aquilo aconteceu? O que exatamente rolou? Afinal, quem era o assassino? Em uma típica história de crime e mistério, essas perguntas costumam ter respostas bem claras e exatas. Não é o caso desta graphic novel, o que pode frustrar.

Esta não é uma história típica do gênero. Embora as respostas não sejam claras e exatas, estão lá. Todas as pistas, dicas e o tipo de raciocínio utilizado para chegar à solução do mistério estão dentro da trama.

Como em um quebra-cabeça, as peças são dadas para que o leitor monte a imagem final. Entretanto, isso pode ser feito de mais de uma maneira. Essa construção de significado é, talvez, a questão central do álbum.

Para começar, a vítima do crime é Deus. Ora, sabe-se que não foi Deus que morreu, mas o ator que o interpretava. Entretanto, ao longo da história a ideia é repetida diversas vezes: “Deus foi assassinado. Quem fez isso?”.

Essa é a premissa básica em The Mystery Play: Deus está morto. Trata-se da questão do simbolismo, da ficção e da fantasia que se misturam com os “fatos”. Daí vem o verdadeiro “mistério” da peça, a questão da “transubstanciação”, a transformação de significados e apreensão da própria realidade.

O detetive Frank Carpenter é um sujeito preocupado em enxergar as coisas em sua totalidade. Para ele, o todo é muito maior que a soma das partes. Ironicamente, para chegar ao todo, o investigador precisa juntar as partes.

Obcecado em encontrar significados, Carpenter explica à repórter Annie Woolf sua crença de que tudo o que acontece nos arredores da cena do crime tem relevância. Ele diz que, se encontrar um palito de fósforo, vai querer saber onde ele foi feito e de qual árvore é a sua madeira.

Severs, o ator que interpreta o Diabo e principal suspeito do crime, questiona a filosofia de Carpenter. Para ele, a construção de significado é feita pelo próprio homem, e as peças são montadas de acordo com a vontade daquele que as manipula. A única ordem é a ordem que conseguimos impor ao mundo.

A cena do interrogatório entre Carpenter e Severs é uma explícita sobreposição da realidade pelo mundo simbólico. O detetive diminui de tamanho e o suspeito cresce, ganha vultos de um demônio de verdade, torna-se o próprio Diabo.

Os medos de Carpenter tomam forma em uma sequência que depois revela-se apenas uma alucinação. Mas, dentro da lógica de The Mystery Play, as visões e delírios têm tanto peso quanto os fatos.

Carpenter segue entrevistando seus suspeitos. O prefeito Purves, o reverendo Tilley, a própria Annie Woolf. E ela acaba descobrindo que o detetive esconde seus próprios – e terríveis – segredos.

A necessidade de reconstruir o todo, de conseguir enxergar a totalidade sob uma nova perspectiva, uma nova configuração de suas partes, revela-se uma desesperada tentativa de Carpenter reconstruir a si mesmo. O que ele busca é a redenção para um crime brutal que ele mesmo cometeu.

A relação das partes na integração do todo é um tema importante não apenas para o personagem Carpenter, mas na própria obra do autor, Grant Morrison.

Escrita em 1993, The Mystery Play é uma obra estranha, mesmo para os padrões do autor. O surrealismo e o fantástico não são explícitos, como em Patrulha do Destino. Há uma sutileza e um comedimento ao longo da trama que torna o nonsense da sequência final ainda mais desconcertante.

De certa forma, lembra um pouco a estrutura de Asilo Arkham – uma séria casa em um sério mundo, com os “passeios” de Carpenter por Townely e seus encontros e diálogos com os diversos personagens.

O tema da “transubstanciação” do mundo através da ficção, de sua ressignificação e da reconfiguração das partes está presente em diversas obras do roteirista, como Os Invisíveis e Flex Mentallo.

A própria linguagem das HQs explicita a ideia de conexão de unidades de informação num todo maior de significado. Em The Mystery Play, não apenas a sequência dos quadrinhos, mas as cenas e temas espalhados ao longo da obra podem ser relacionados para a “solução” do crime ou, como o próprio Carpenter fez, para qualquer uso que o leitor queira lhe conferir.

A imagem do casaco pendurado, por exemplo, permite uma série de interpretações. Vazio, o casaco insinua a presença daqueles que um dia o vestiram. Pendurado na parede ou em uma cruz, assombra. E quando vestido por Annie Woolf, na última página do livro, parece assentar em seus ombros um legado de culpa que deve ser passado sempre adiante.

A relação de The Mistery Play com a mitologia judaico-cristã também é muito interessante. Assim como a Bíblia, esta história em quadrinhos está dividida em duas partes.

A primeira abre com referências ao Velho Testamento. Além da encenação, há o assassinato de Deus, o “pecado original” que irá conduzir toda a trama. A investigação do detetive Carpenter conduz o leitor por diversos episódios de diálogos fechados. Em um deles alguém cogita que Deus talvez tenha criado a Humanidade para que ela o matasse.

A segunda parte abre com a encenação dos evangelhos. É nítida a expiação do “pecado original”. Carpenter é punido pelo crime que cometeu contra a menina Sarah. Crucificado, consegue sua redenção ao se dar conta de quem realmente tinha assassinado Deus. Daí sua fuga inusitada. O casaco, símbolo da culpa, fica pendurado em outro símbolo, a cruz.

Mais tarde, esse casaco irá repousar sobre os ombros do verdadeiro assassino de Deus, a pessoa que o matou para realizar plenamente todas as suas ambições e potencialidades. Mas será que, como insinuado, todos nós não acabamos cometendo esse crime? Será que não fomos criados para superar nossos criadores?

O modo como Jon J. Muth trabalha a luz é belíssimo e constrói um clima intimista e sombrio, que combina perfeitamente com a história. A técnica da aquarela, utilizada pelo artista, vale-se da sobreposição de manchas transparentes de cor que vão dando forma e profundidade às imagens. Novamente, o todo é maior que a soma das partes.

O “realismo” de certos rostos é apenas a síntese inevitável que nossa mente faz das manchas coloridas sobrepostas. Em muitos momentos, as pinceladas e manchas apenas insinuam as formas e, a partir disso, o leitor concebe toda uma multidão ou um cenário complexo.

A ilusão do “realismo” se desfaz quando os personagens têm suas roupas interrompidas em pinceladas “inacabadas”.

The Mystery Play é um trabalho de Morrison que parece flertar com as narrativas de David Lynch. Mais do que a solução do crime, o que importa é a montagem das peças do quebra-cabeça. A configuração das partes pode implicar em diferentes totalidades, em concepções diversas de si mesmo e do mundo.

Relativamente modesto, quando comparado a outras histórias de Morrison, The Mystery Play é apenas isso: um jogo de peças para ser montado ou desmontado de acordo com a vontade do leitor. Uma história que se presta a ser aquilo que quisermos que ela seja. Ou uma bobagem enfadonha. Ou uma impressionante brincadeira com os limites da ficção.

Classificação

5,0

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