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Reviews

Mort Cinder

25 fevereiro 2019

Mort CinderEditora: Figura – Edição especial

Autores: Héctor Germán Oesterheld (roteiro) e Alberto Breccia (arte) – Originalmente em Mort Cinder (tradução de Ernani Ssó).

Preço: R$ 89,00

Número de páginas: 232

Data de lançamento: Setembro de 2018

Sinopse

Ezra Winston, proprietário de um antiquário londrino, vive cercado de objetos que trazem um pedaço da História. Um dia, um relógio estilo Luís VI misteriosamente volta a funcionar, enquanto chega às suas mãos um intrigante amuleto. Ambos serão a chave de um intrincado enigma que fará Winston adentrar os sombrios subúrbios da capital da Inglaterra, até levá-lo ao encontro de Mort Cinder, o homem das mil mortes, que se erguerá uma vez mais de sua tumba.

Junto ao pó de suas roupas, está todo o peso da sua saga humana sobre a Terra: as obras da Torre de Babel, os navios do tráfico de escravos, as trincheiras da I Guerra Mundial, a mítica Batalha das Termópilas – Mort Cinder esteve em meio a tudo isso e volta ao mundo dos vivos para contar.

Positivo/Negativo

São três imortais presentes em Mort Cinder, historieta argentina publicada originalmente em capítulos entre 1962 e 1964, na revista Misterix: o protagonista que leva o nome da obra e seus autores, Héctor G. Oesterheld (1919-1977) e Alberto Breccia (1919-1993).

O inusitado é que tanto numa espécie de prólogo quanto na primeira história, Os olhos de chumbo, quem protagoniza é Ezra Winston, o narrador, um senhor dono de um antiquário em Londres, cujas expressões foram resultado de um exercício do próprio Breccia acerca da sua futura velhice.

“O homem das mil mortes” aparece muitas páginas depois, quando o coadjuvante tenta solucionar o mistério em volta de uma marca e fugir de homens esqueléticos que parecem marionetes comandadas por um mesmo fio. Ezra descobre que as notícias nos jornais da morte de um enforcado foram um tanto exageradas.

Curiosamente, os primeiros capítulos desta história respeitam o formato horizontal da revista Misterix. Uma decisão bastante acertada, visto que algumas compilações desrespeitaram o formato original e acabaram “verticalizadas”, mexendo na diagramação ou cortando a arte.

Arte de Mort Cinder

A obra resiste ao tempo, inclusive no texto de Oesterheld, pai do clássico O Eternauta, ao lado de Francisco Solano López (1928-2011), e um dos mais importantes roteiristas que a Argentina já concebeu.

Oesterheld mostra toda uma veia literária na narrativa, com pouquíssimos vícios da época, como relatar a cena já mostrada na arte. Com elegantes descrições que aprofundam a trama, não teria limites para as “viagens” temporais pelas memórias do protagonista, ativadas por objetos coletados no antiquário.

O roteirista não se importa em explicar muitas situações, o que levanta dúvidas e especulações, fazendo com que a curiosidade seja atiçada. Em duas histórias que se passam entre os muros de uma prisão, por exemplo, não sabemos por qual motivo de Mort Cinder foi parar atrás das grades; ou virou testemunha da escravidão em um navio negreiro.

Através do fluxo de memória latente que Mort Cinder pode se deslocar entre o espaço/tempo, tema presente em várias HQs de Oesterheld, incluindo O Eternauta e Sherlock Time, primeira colaboração com Breccia.

Pode-se perceber também o aspecto político presente na obra, já que a Argentina sofreu vários golpes de estado durante o Século 20, incluindo nos anos 1960 da série. “O passado está tão morto quanto pensamos?”, pergunta Ezra Winston. Uma questão que pode levar a mais de uma interpretação, assim como o objetivo do professor Angus – inimigo de Cinder – é dominar as mentes para conquistar o mundo. As marionetes com “olhos de chumbo” seriam a prova disso.

Vítima da ditadura, Oesterheld desapareceu em abril de 1977, sequestrado pelas forças armadas. Ainda hoje são desconhecidos o local e data da sua morte. Suas quatro filhas também foram mortas nesse período.

Referência para muitos desenhistas, Alberto Breccia influenciou desde o argentino Eduardo Riso (de 100 Balas), que assina o prefácio desta edição, passando pelo norte-americano Frank Miller (Cavaleiro das Trevas), que tem uma declaração na quarta capa, de que a história dos quadrinhos é dividida em antes e depois do artista uruguaio.

Mestre no jogo de luz e sombra, é bem fácil perceber os ecos de Breccia em obras de Miller, como na série Sin City, ou ainda imaginar que 300 de Esparta poderia ter saído da derradeira história da coletânea, na qual a Batalha das Termópilas é o cenário.

Graças ao zelo da edição da Figura, o leitor pode apreciar os experimentalismos realizados por Breccia em Mort Cinder baseados no cinema expressionista alemão. Além de testemunhar as pinceladas bem visíveis na excelente impressão, outras técnicas também são evidenciadas, desde salpicos com escova de dente, passando por uma gama de “ferramentas” como pano, pente e lâmina de barbear e chegando a texturas provocadas pelas próprias impressões digitais.

Arte de Mort Cinder

A Figura foi atrás de arquivos de imagens de uma editora espanhola que digitalizou a maioria das artes originais. As páginas que não conseguiu foram baseadas nas melhores reproduções disponíveis. Um belo trabalho, visto que em muitas versões, devido a prováveis limitações gráficas da época, esses detalhes foram perdidos devido ao intenso contraste (a edição que saiu em 2015 pela Levoir/Público em Portugal sofria desse mal).

O volume nacional, em capa dura, tem formato 21 x 29,7 cm, papel couché de alta gramatura, biografia dos autores, o já citado prefácio de Risso e um ótimo texto sobre a gênese da série como posfácio. Há alguns erros de revisão, como o termo “ficção-científica” com esse hífen.

Apesar dos poucos anos de atividade, a Figura vem se destacando por resgatar ou trazer pela primeira vez materiais vitais para o entendimento da Nona Arte, a exemplo dos dois volumes de Sharaz-De – Contos de As Mil e Uma Noites, do italiano Sergio Toppi (1932-2012), e Crimes e Castigos, do argentino Carlos Nine (1944-2016).

Atualmente, a editora está em campanha no Catarse para A máscara da morte rubra e outros contos de Poe, do italiano Dino Battaglia (1923-1983).

Assim como O Eternauta (cujos volumes foram lançados em 2012 e 2013, respectivamente, pela Martins Fontes), Mort Cinder pode ser chamado de “obra-prima” (palavra desgastada por trabalhos duvidosos por aí) e veio aqui do lado, de tão perto dos leitores brasileiros. Um clássico (mais um termo surrado) que é como seu protagonista: resiste ao tempo e o atravessa incólume.

Classificação:

5,0

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