"Boa história. Mas acho que você se perdeu na trama". O alerta vem de um dos personagens de Nação fora da lei ainda no primeiro terço da HQ. Autoirônica e espirituosa, a fala poderia facilmente servir para a própria série do britânico Jamie Delano - não à toa, é dele mesmo a autoria da frase. Se o leitor não atentar para os numerosos detalhes, desdobramentos, pontos de vista, misturas e relações apresentados no álbum, corre o risco de... se perder na trama.

Mas o esforço - nada sacrificante, é bom dizer - vale a pena. Trata-se de uma das grandes histórias em quadrinhos lançadas por aqui em 2012. Originalmente publicada pela Vertigo, nos Estados Unidos, entre 2000 e 2002, foi cancelada na edição # 19.

Algum tempo depois, os direitos autorais foram retirados da DC e ficaram com Delano. Ele topou republicar a série em um encadernado do selo independente Desperado, em 2006, com os desenhos da dupla croata Goran Parlov e Goran Sudžuka saindo em preto e branco. É esta versão, com o subtítulo Sangue entre irmãos, que chega ao Brasil pela Gal.

Devido ao vaivém, fica o lamento para a ausência, na edição brasileira, de reproduções das impressionantes capas originais feitas por Glenn Fabry - o mesmo de Preacher - quando a série saiu pela Vertigo (veja-as aqui.

De qualquer forma, não há muito mais a cobrar da obra. Inicialmente, o leitor pode realmente se confundir e até demorar a compreender as intenções e características dos personagens centrais. Mas, capítulo a capítulo, a trama tão bem estruturada por Delano vai ganhando seus contornos e se revelando com um grande épico familiar.

Na contracapa há referências a Sandman, Preacher e Transmetropolitan. O que pode parecer uma mistura exagerada passa a fazer completo sentido quanto mais envolvido o leitor fica com a saga de Story Johnson, escritor misterioso de 100 anos de idade que surge desmemoriado em pleno interior dos Estados Unidos e se dispõe a percorrer estradas e cidadezinhas conservadoras para descobrir a verdade sobre si mesmo e sua família milenar.

Quando bolou Nação fora da lei, Delano já fizera grande sucesso como roteirista das histórias de John Constantine, recentemente republicadas nos encadernados Hellblazer - Origens. Isso deu a ele total liberdade neste projeto claramente pessoal e muito ousado. "Um suspense político de ritmo rápido e violento; uma história em quadrinhos chapada e repleta de humor negro; um faroeste bizarro; uma saga familiar épica que passeia pela mitologia subterrânea dos EUA", escreve o autor na apresentação do álbum.

No mesmo texto, ele diz ter se inspirado no mito dos "Johnson", termo surgido no Século 19 para caracterizar vagabundos e ladrões que circulavam a esmo pelo país e que foi apropriado pelo escritor William S. Burroughs em sua literatura.

Inventivo, Delano dá nova roupagem ao conceito dos "Johnson", desenvolve toda uma mitologia específica para suas próprias criações e insere figuras marcantes no enredo. Além de Story (espécie de Jesse Custer sem memória, sem religiosidade e sem a palavra de Deus, mas com talento para fabular sobre tudo e todos), destacam-se John Law, delegado violento e traumatizado; e o Sr. Luva, vilão estranhíssimo, cujo sadismo e perversão aparecem em alguns dos melhores momentos da trama. Diversos coadjuvantes vão e vêm, tornando o mosaico de Nação fora da lei mais intrigante e rico.

Os desenhos de Sudžuka (nos oito primeiros números) e Parlov (nos três finais) são perfeitos para o clima pulp trabalhado por Delano, tanto pelos traços coesos e realistas, quanto pela utilização dos espaços nas páginas, algumas vezes montando verdadeiros quebra-cabeças para dar conta da quantidade de informação a ser apresentada.

A diferença entre Parlov e Sudžuka é quase imperceptível, mantendo a coerência visual de toda a história e fazendo com que a leitura tenha a fluência e o envolvimento fundamentais para o enredo.

A Gal (que, infelizmente, deixou passar umas mancadinhas de revisão) promete para 2013 o segundo e derradeiro volume de Nação fora da lei, intitulado Rumo ao Inferno e já anunciado no apêndice deste primeiro álbum. É torcer para que esta HQ tão bem urdida por Jamie Delano seja descoberta e valorizada no Brasil, mais de uma década após sua publicação original.