Não era você que eu esperava
Editora: Nemo – Edição especial
Autores: Fabien Toulmé (roteiro e arte) – Originalmente em Ce n’est pas toi que j’attendais (tradução de Fernando Scheibe).
Preço: R$ 59,80
Número de páginas: 256
Data de lançamento: Fevereiro de 2017
Sinopse
Quando Julia, a segunda filha do quadrinhista francês Fabien Toulmé, nasce com Síndrome de Down – até então não diagnosticada na gestação –, a vida do autor desmorona por completo.
Indo da fúria à rejeição, da aceitação ao amor, ele fala sobre a descoberta de como é ser diferente, já que os filhos nunca são do jeito que se espera.
Positivo/Negativo
No começo do documentário Do luto à luta (2004), o diretor brasileiro Evaldo Mocarzel promove diante da câmera uma breve encenação teatral com máscaras. Ao final, são revelados, entre os atores, alguns portadores da Síndrome de Down, alteração genética produzida pela presença de um cromossomo a mais.
Pai de uma filha com trissomia (que foi atriz-mirim na telenovela Páginas da vida, de Manoel Carlos, em 2006), ali o cineasta aponta o primeiro impacto do preconceito para quem está assistindo, quando as máscaras caem.
No início, as entrevistas do longa-metragem são centradas nos pais das crianças, com foco na reação destes à notícia da disfunção no momento do nascimento.
Esse primeiro impacto foi sentido e relatado por Fabien Toulmé em Não era você que eu esperava, sua primeira HQ longa. Assim como no filme, as armadilhas da obra poderiam se tornar algo piegas, didático ou institucional, mas são efetivamente desarmadas pela extrema sinceridade como o quadrinhista conta esse momento da sua vida familiar.
Assim como no documentário, uma cena acerca do preconceito é reproduzida no prólogo do álbum. Entre brincadeiras com bonecos Playmobil, passagens do filósofo libanês Gibran Khalil Gibran (1883-1931) e episódios de Jayce e Os guerreiros do Espaço (animação francesa que era exibida no Brasil pelo SBT), o garoto Fabien teve seu primeiro contato com um portador da síndrome e foi testemunha de como o mundo pode ser hostil e duro.
Casado com uma brasileira e pai da pequena Louise, o autor mostra muito receio e ansiedade com a segunda gravidez da sua esposa, com as idas e vindas das baterias de exames do pré-natal, quando ainda morava no Nordeste do Brasil.
Mesmo com o drama real que seria constatado apenas quando Julia nascesse, adicionando uma malformação cardíaca no bebê, o lado pesado do "luto" é equilibrado pela comicidade involuntária regida pela imaginação do autor em determinados momentos, em que ele materializa graficamente tais reações.
Preocupado em somente contar a sua história, Toulmé encaixa sua narrativa fazendo "pontes" de situações e usando metáforas. Ele não deixa de lado o exorcismo de todos os seus demônios de ser uma pessoa comum que falha. Um ser humano que pode vir com atitudes fúteis e egoístas, dependendo das circunstâncias, e que encontra forças para entender e contornar as dificuldades de assimilação.
É uma coragem impressionante se expor tanto desse jeito, o que coloca seu relato bem mais próximo dos leitores, principalmente quem tem filhos, com a anomalia genética ou não.
Os aspectos informativos ao longo da história acontecem de forma bastante natural, partindo da própria curiosidade paterna de investigar o desconhecido e suplantar a imagem – aquela que ele foi testemunha quando mais jovem – de que os portadores são pessoas limitadas, excluídas e dependentes.
Mas, antes de tudo, vem a rejeição, o desânimo da negação, a fuga da realidade, a tentação do desespero e o receio da insegurança do futuro. Todos esses fatores são colocados com muita sensibilidade pelo autor no processo de aceitação, concluindo bem cada capítulo. São lições que estão subentendidas, inclusive pela própria perspectiva das crianças, representada na pureza da primogênita Louise.
Com um desenho limpo e cartunesco, flertando com a linha clara de seus conterrâneos, a obra usa as emoções como a raiva, a tristeza e a resignação combinadas com uma paleta praticamente monocromática. Apenas num momento aparece uma variedade de cores e outro tom, que condiz com determinado momento anterior e é sobreposto quando evoca um flashback.
A edição da Nemo em brochura tem formato 17 x 24 cm, capa cartonada com orelhas, papel off-set de boa gramatura e impressão.
Houve um lapso editorial primário de troca de páginas no final do penúltimo capítulo e na primeira do desfecho. Observando pela cor esverdeada que predomina no penúltimo tomo, colocaram a primeira página azulada da última parte antes do enunciado do derradeiro capítulo.
Isso fica mais evidente ainda por se tratar de uma sequência de ação que continua na segunda página deste: numa livraria, uma mulher faz um carinho em Julia, que está no carrinho acompanhada da família. Na outra página, aparece o título do capítulo, e na seguinte há uma página em branco (que está no lugar da trocada) e só depois se vê a mulher que afagou o bebê no carrinho indo embora, e os pais observando-a, desconcertados.
Apesar desse "escorregão", Não era você que eu esperava vai além da mesmice da maioria dessas autobiografias do cotidiano, chatas e sem graça, em que todo autor pensa ser uma Odisseia ou Eneida da vida.
Atualização: após a publicação desta resenha, a Nemo informou que o lapso foi devidamente corrigido numa nova tiragem.
Assim como Pílulas azuis, a HQ ganha contornos universais, informando sem ser pedante e impulsionando para uma reflexão de forma tão honesta quanto Fabien Toulmé transparece nas suas páginas. O ser humano pode errar, duvidar, ignorar e temer, mas também pode dar mais um passo para a sabedoria da evolução.
Classificação:
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