Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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NO CORAÇÃO DA TEMPESTADE

1 dezembro 2004

Autores: Will Eisner (história e arte).

Preço: Cr$ 100,00 (preço da época)

Número de páginas: 224 páginas (formato magazine, capa dura)

Data de lançamento: 1995

Sinopse: Um soldado observa o mundo através de uma janela de trem.
Cada imagem e pedaço da paisagem observados induzem o soldado a abstrair
significados que o remetem e provém de suas recordações.

Com essa espetacular analogia, Eisner inicia a graphic novel autobiográfica
No Coração da Tempestade, que tem como foco central o difícil cotidiano
das famílias de imigrantes jewish.

Naqueles dias que antecederam a Segunda Grande Guerra, a vida era muito
dura, sobretudo para algumas minorias. Várias famílias, por temor do que
seria a vida na Europa ou pela esperança de como seria no novo mundo,
migraram para a América, Argentina, Brasil, Estados Unidos e outros países
que receberam milhares de migrantes.

Positivo/Negativo: A história de Eisner mostra a dura vida dos
recém-chegados e alguns aspectos do anti-semitismo. É, de fato, uma leitura
muito atraente, sobretudo para os admiradores das HQs, que em grande parte
tem o autor como ídolo.

A utilização das ferramentas de narrativa gráfica é simplesmente impecável,
até porque, muitas delas foram criadas pelo próprio Eisner. Entretanto,
há momentos em que a descrição dos fatos é excessivamente melodramática.
Talvez por se tratar de sua própria vida, não houve o distanciamento necessário
entre o autor e a obra.

Uma das muitas virtudes de Eisner é a habilidade para usar o desenho e
a organização do padrão gráfico para auxiliar/complementar a história.
A arte passa, então, a qualificar e atribuir propriedades aos personagens
e ao próprio texto.

Contudo, para utilizar a arte como predicado do texto, o artista recorre
a suas memórias visuais. Boa parte das expressões faciais, bem como descrições
corporais das emoções, aspectos nos quais ele é o exemplo máximo de competência,
são frutos da percepção do jovem Will explicitados no desenho do melancólico
Eisner. Resultado: a percepção de realidade foi contaminada pela emoção.

Algumas expressões faciais foram tão magnificadas que lembram caricaturas,
bem diferente da costumeira elegância com que o artista impregna seus
personagens.

Já na primeira recordação do soldado, Eisner mostra por que é considerado
o maior de todos os grandes mestre dos quadrinhos. A cena se dá em duas
páginas, em seqüência, mas não contíguas. Para valorizá-la e direcionar
o olhar do leitor, não há requadro; as três imagens são desenhadas como
se tirando fatias. A cada "tomada" um plano é retirado, revelando a expressão
de nostalgia do soldado ao ver pela janela do trem um caminhão carregando
uma mudança.

Ao virar a página, Eisner usa uma combinação de imagens numa página inteira,
um metaquadrinho. Na arte se vê noção de limite, início e fim de três
cenas e todas se mesclando. Na maior delas, uma mãe esbraveja contra a
escolha daquele bairro para morar.

Na segunda, de tamanho intermediário, a mãe, junto com seu filho, arruma
suas malas; e na terceira, de dimensões bem modestas, um soldado observa,
pela janela do trem, um caminhão carregando uma mudança.

Só essas duas páginas já compensam o trabalho de procurar essa obra (e
há muitas outras de igual genialidade). Nessa seqüência, Eisner utiliza
o que de melhor e mais complexo há na mídia das HQs: multiplicidade de
níveis e planos, a página inteira como um metaquadrinho de contenção temporal
anacrônico, dimensões e profundidade de palco e, sobretudo, a possibilidade
de múltiplos agrupamentos e decomposições da ação mostrada. Tudo isso gera uma interação cada vez maior com o
leitor.

E como o próprio Eisner diz, a virada de página produz uma pausa que permite
uma mudança de tempo, é a oportunidade de controlar o foco do leitor.
Nessa passagem, a técnica é utilizada de forma ainda mais complexa e rebuscada.
O autor colocou o tempo na ordem inversa da leitura convencional, orientando
a percepção de seqüência cronológica pelo tamanho da imagem e pelo uso
de uma referência temporal conhecida, no caso o soldado na janela.

Ao longo da narrativa, Eisner usa uma grande variedade de estilos de agrupamento
da ação em metaquadrinhos, algumas vezes sem requadro algum, explicitando
a dimensão da ação; outras com apenas uma das cenas da página limitada
por um quadrinho com cenas na qual utiliza planos ou uma luz diferenciada.
Tudo para guiar o leitor ao cerne da questão, evidenciando a importância
do ambiente para a ação e/ou permitindo um ritmo diferenciado.

Outro artifício de narrativa brilhantemente utilizado é a extrapolação
da arte do requadro, que, em tese, deveria limitá-la. Mas ao usar esse
recurso aliado à perspectiva, Eisner consegue criar uma sensação que causa
efeito dificilmente conseguido por qualquer outra mídia.

Mais que uma história bem narrada e uma aula de técnicas de narrativa,
No Coração da tempestade é uma obra-prima dos quadrinhos.

A Editora Abril caprichou na edição desta graphic novel
(lançada primeiro como uma série em duas partes). A edição está perfeita,
encadernação costurada com capa dura, papel de qualidade, uma bela obra.
Destaque para os textos colocados no início e no final, o primeiro escrito
pelo próprio Will Eisner e o segundo pelo competente jornalista Marcelo
Alencar.

Para fechar em grande estilo, a edição é numerada e autografada.

Classificação:

4,0

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