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O perfeito estranho

24 dezembro 2018

O perfeito estranhoEditora: Veneta – Edição especial

Autores: Al Feldstein, Johnny Craig, Otto Binder, Carl Wessler, Jack Oleck e William Gaines (roteiro) e Bernie Krigstein (arte) – Originalmente em Master Race and other stories (tradução de Dandara Palankof).

Preço: R$ 94,90

Número de páginas: 264

Data de lançamento: Setembro de 2018

Sinopse

Antologia que reúne a maior parte do trabalho do quadrinhista norte-americano Bernard “Bernie” Krigstein (1919-1990) na EC Comics, entre 1953 e 1956. São histórias curtas sobre terror, suspense e guerra, que contribuíram para a reinvenção narrativa e psicológica dos comics.

Positivo/Negativo

Mais de seis décadas separam esta coletânea daquele universo turbulento pós-Segunda Guerra Mundial que era os Estados Unidos. Nesse contexto, tentar impulsionar uma visão de Belas Artes para uma produção industrial que migrou das páginas dos jornais para as revistas – os chamados comics – era uma tarefa árdua e desgastante na sala do editor.

Para os mais novos e para aqueles que são de algumas gerações atrás, principalmente quem foi leitor nos anos 1980, é bem mais fácil ter referências afetivas, técnicas e artísticas do gibi – aquela revistinha que era “coisa de criança” – representadas na supremacia massiva do gênero de super-heróis.

Bem acertado e nevrálgico evocar na quarta capa de O perfeito estranho um dos sine qua non do gênero nos últimos anos: O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. “Ele veio primeiro e eu o imitei”, reverenciou o quadrinhista, quando indagado sobre os paralelos da sua obra máxima com Raça Superior (o famoso Master Race, no original), do Bernie Krigstein.

Um exemplo da inspiração evocada na capa desta antologia é a cadência em decupagem da morte dos pais do jovem Bruce Wayne, com cápsulas voando, mão protetora definhando e o balé de corpos e pérolas.

Batman - O Cavaleiro das Trevas

O perfeito estranho

Pode parecer algo banal, como assistir aos filmes de Serguei Eisenstein (1898-1948) sem saber que eram produções pioneiras da montagem como forma de narração contínua e dramaticidade. Ficamos anestesiados por serem recursos tão corriqueiros nos dias de hoje, mas que eram praticamente inexistentes na esmagadora maioria das HQs na primeira metade dos anos 1950.

Fora o ritmo de mercado, layouts padronizados ou a falta de criatividade de autores “engessados”, um dos motivos que contribuía negativamente para atravancar esse avanço narrativo nos comics era o espaço. Títulos da EC Comics geralmente continham histórias com, no máximo, seis páginas.

Estrelada por um autor praticamente desconhecido no Brasil, a edição da Veneta (calcada no projeto da Fantagraphics) tem consciência disso e traz uma série de textos primordiais para a imersão e contextualização da importância de Krigstein para os quadrinhos.

São cerca de 60 páginas de artigos, como a longa dissecação do biógrafo Greg Sadowski (autor do premiado livro B. Krigstein) de todas as 32 HQs apresentadas no volume, citando falas do artista e editores, assim como biografias do quadrinhista e dos roteiristas, os altos e baixos da EC antes e depois da “caça às bruxas” do macartismo e o processo de restauração da única história inédita, Negreiro, além de um prefácio feito para a edição nacional, assinado pelo editor Rogério de Campos.

A luta nos bastidores para persuadir o editor William Gaines (1922-1992) a aumentar o número de páginas de Raça Superior é uma amostra de como os comics perderam com a saída de Bernie Krigstein do ramo, no começo dos anos 1960, trocando a prancheta por pincéis e pela lousa da sala de aula.

Exaustivamente analisada e citada sobre avanços gráficos e acuidade psicológica nos quadrinhos, essa HQ até demorou para sair devido ao encaixe do número extra de páginas. Tudo isso leva à indagação: O que aconteceria caso Krigstein tivesse mais liberdade e permanência no cenário?

Em muitos casos, o artista burla a dificuldade do espaço para imprimir uma dinâmica que mal existia na época, evidenciando o lado psicológico, dramático e experimental. Por vezes, abria mão de um quadro geral para fatiar a página de apresentação ou espremer vários quadros para conseguir o efeito que queria transmitir.

O perfeito estranho

Outra característica interessante é o conjunto de estilos que ele variava de uma história para outra. São retículas, hachuras e jogos de luz e sombra tão ecléticos quanto os temas: sci-fi, suspense, terror, crime e guerra.

Algumas histórias unem uma riqueza literária das descrições nos recordatórios com a narrativa visual que é usada normalmente nos dias de hoje. Pode ter o vício descritivo repetitivo entre imagem e palavras, mas em muitos casos o texto é tão fundamental para a atmosfera e mergulho quanto os traços.

Nesse ponto, as tramas variam de ótimas críticas e analogias para enredos cheios de ironia, sagacidade e boas reviravoltas. Chegando ao terço final do livro, percebe-se certo “cansaço” devido ao peso dos grilhões que o quadrinhista arrastava, com uma narrativa mais tradicional, assim como as histórias de guerra, contadas de forma certinha e moralista.

Dentre os destaques, o expressionismo de Você, assassino, retirado do clássico O gabinete do Doutor Caligari (1920), filme alemão de Robert Wiene (1873-1938), um ensaio bem fascinante de perspectivas e ângulos.

As composições de dualidade com humor negro de Há mais felicidade em dar... e da claustrofóbica As catacumbas são pontos altos da coletânea, bem como toda a dramaticidade e carga psicológica extraída de contos como Dentro da bolsa e a supracitada Raça Superior.

Curiosamente, duas HQs apresentadas aqui foram produzidas para serem em 3D: a já citada e inédita Negreiro e O monstro da quarta dimensão, que só tinha sido publicado em 1954 até então. No ensaio de Sadowski e no texto sobre a restauração descreve-se o processo de colocar camada sob camada para se ter o efeito tridimensional.

Pelo menos sete das 32 HQs apresentadas em O perfeito estranho já saíram no Brasil. A poética A máquina voadora, baseada em um conto de Ray Bradbury (1920-2012), foi publicada na antologia O Papa-Defuntos (1990, LP&M) como Olhai os pássaros.

As demais foram lançadas na extinta Cripta do terror (1991-92, Record): no número 2 saiu O fosso (como A rinha); na 3, Quimera foi traduzida como Sonho de fumaça; Dentro da sacola está no número 4 (nomeada como De cabeça); no 5 foi a vez da Raça Superior; já no 6 saiu Você, assassino; e, por fim, no 7 teve As catacumbas.

O perfeito estranho

Entre os anos 1940 e 1980, alguns títulos desenhados por Krigstein chegaram a ser publicados por aqui, em revistas como Superman (Ebal), Globo Juvenil (O Globo), Histórias Fantásticas (Bloch) e Terror de Drácula (Abril).

A edição da Veneta tem capa dura, formato 21 x 28 cm, papel off-set de boa gramatura e ótima impressão. Com pouquíssimos escorregões de revisão, poderia ter sido colocado os nomes dos roteiristas no sumário (eles não eram creditados na época, inclusive algumas histórias não se tem ciência da autoria), como visto no volume gringo da Fantagraphics. De toda maneira, eles são citados de modo evasivo no longo texto de Greg Sadowski.

Observando os detalhes, a capa que evoca a cena mais famosa do autor tem problemas na maquiagem das retículas da margem de corte, além do título ser colocado de maneira estranha, comprometendo um pouco a leitura, principalmente na lombada.

O perfeito estranho se torna uma obra essencial para se entender a evolução dos comics e faz um belo resgate de uma das mais importantes figuras que pavimentou a trilha bem antes de cultuados nomes como Jim Steranko, Art Spiegelman, Daniel Clowes, Chris Ware e Frank Miller. Todos fãs de um (para a maioria dos leitores brasileiros) desconhecido chamado Bernie Krigstein.

Agora não mais.

Classificação:

4,5

.

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