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O relatório de Brodeck

25 fevereiro 2019

O relatório de BrodeckEditora: Pipoca & Nanquim – Edição especial

Autores: Manu Larcenet (roteiro e arte) – Originalmente em Le rapport de Brodeck (tradução de Pedro Bouça).

Preço: R$ 120,00

Número de páginas: 328

Data de lançamento: Dezembro de 2018

Sinopse

Brodeck, recém-saído de um campo de concentração após o término da Segunda Guerra Mundial, regressa ao seu povoado, próximo à fronteira com a Alemanha.

Certa noite, ele chega ao armazém local no momento em que os homens de sua aldeia acabaram de cometer um assassinato brutal. Por ser um escriba, é obrigado pelos outros a fazer o relatório sobre o ocorrido.

Enquanto aprofunda sua investigação, Brodeck faz perigosas e chocantes descobertas, que podem mudar sua vida e a de outras pessoas de maneira irreversível.

Positivo/Negativo

Qual é a gênese do mal? Aquele mal pior que habita individualmente no nosso âmago. O mal enraizado no coletivo, na sociedade, no ser comunitário. Quando essas raízes são plantadas? Se é que são plantadas, já que podem ser cultivadas.

De certa forma, pode ser feito um paralelo de O relatório Brodeck (consequentemente também do livro homônimo no qual ele é baseado, escrito pelo francês Philippe Claudel) com o filme A fita branca (2009), do diretor austríaco Michael Haneke.

Muito além da arte em preto e branco de Manu Larcenet e da fotografia sem cores igualmente bela presente no longa-metragem, ambos podem ser encarados como alegorias das mazelas da humanidade.

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, A fita branca mostra um vilarejo protestante no norte da Alemanha, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Por meio de pequenos atos sintomáticos, pode ser diagnosticado que o país atravessa um período de gestação de algo autoritário e violento, mas que ainda não tem uma denominação clara do que viria a ser.

Já em O relatório de Brodeck, um amistoso forasteiro chega numa aldeia no meio do nada e nos calcanhares fronteiriços da Alemanha que sentiu a bota do nazismo após a Segunda Guerra. Criada uma antipatia imediata, mesmo imbuído com seu espírito tranquilo, o estrangeiro vira vítima fatal da desconfiança e neurose dos moradores traumatizados.

Página de O relatório de Brodeck

Vivendo afastado da comunidade, o escrivão Brodeck é aguardado para fazer o tal relatório para entregar às autoridades e, assim, isentar toda a aldeia do assassinato. Bom, ele é unilateralmente intimado para escrever. Só esse detalhe já mostra o quanto a raiz que também está presente em A fita branca tem suas fortes ramificações em todo o solo, independentemente das castas sociais.

Quando o leitor é convidado a ligar os pontos, descobrindo por meio de terríveis flashbacks, até que ponto pode levar o ser humano a tal julgamento em conjunto, ou até mesmo a uma total estagnação comparada ao animal subjugado.

É interessante traçar um paralelo metafórico: Brodeck precisa colocar as impressões protocolares tatuadas em tinta no papel para “apagar” o que não é visto como um crime pelos outros – marcados como “vítimas” no passado não tão distante.

A questão aqui é como se pode entender o que é justificado como “correto”, não por uma pessoa solitária, mas por um coletivo, como um todo. Essa reflexão é a que mais assusta e a que impulsiona o protagonista a colocar na berlinda a sua própria vida e sua função nesse grupo social de que marginalmente faz parte.

Conscientemente, tanto a aldeia quanto o estrangeiro não tem nome (na verdade, o leitor não conhece seus nomes). Podia ser em qualquer lugar entre a Alemanha e França ou até qualquer lugar no mundo, caso se focasse só no esqueleto da problematização.

Um homem culto, de boa aparência, sorrindo para olhares pesarosos e chucros de quem o julga por ser o primeiro a “invadir” a região após a guerra. Mas se engana quem achar que é apenas uma história sobre xenofobia. Vai muito mais além, se colocarmos ideias gerais, como o medo alimentado por suposições ou a rejeição/ódio ao diferente.

Assim como no livro de Claudel (inédito no Brasil, mas lançado pela portuguesa Asa), a revelação não é o crime ou como ele foi feito. Logo nas primeiras páginas, o leitor é informado dele. A ação que geralmente é o clímax de uma obra – um assassinato – vira parte central de um quebra-cabeça montado por meio de uma narrativa não linear, dando uma forte sustentação ao gibi à medida que avança.

A edição trazida pela Pipoca e Nanquim reúne todas as duas partes da adaptação (O Outro e O Inominável), lançadas separadamente na Europa. No final do primeiro ato, Larcenet se apropria dos diálogos de Brodeck com o descrente padre local para um excelente “gancho moral” para o próximo ato, no qual artistas com seus espelhos podem dilacerar mais ainda cicatrizes no rosto do povo.

A “verdade” é o maior elefante na sala de estar, quando esse lugar pode ser considerado toda uma aldeia. Um assunto tão universal que a própria história em quadrinhos pode ser considerada um espelho nos turbulentos dias atuais, nos quais a falta de empatia é algo corriqueiro.

É assim, de forma crua, que se solidificam os traços realistas marcados do quadrinhista francês. Sem pressa, pontuando cada sequência com vários “cortes” de detalhes dos cenários, a narrativa é colocada de maneira cinematográfica. Não apenas pelo seu formato “deitado” – widescreen – como também em sequências inteiras decupadas na ação.

Um exemplo é nas recordações do personagem principal no campo de concentração, nas quais os nazistas aparecem como figuras grotescas, deformadas e monstruosas (uma desumanização exclusiva física, visto que alguns oprimidos cadavéricos mais tarde também se tornam opressores). Quando um prisioneiro é espancado, Larcenet faz questão de pontuar com vários quadros o acontecimento, enfatizando pela “lentidão” que é uma lembrança dolorida e muito presente para Brodeck.

Página de O relatório de Brodeck

Impressionante como ele constrói com sombras onipresentes bem demarcadas os detalhes minuciosos, duros e frios da geografia acidentada, da fauna e flora, assim como das feições soturnas entalhadas nos rostos angulosos dos moradores.

Em determinada passagem, o autor abandona o nanquim e aproveita para homenagear a carvão grandes pintores mundiais como Caravaggio (1571-1610), Pissarro (1830-1903) e Cézanne (1839-1906).

Comparando ao livro, o quadrinhista impõe à adaptação sua personalidade narrativa. Ele não se restringe a somente repassar graficamente as descrições das situações e cenários ou seguir a obra original como uma cartilha, ao mesmo tempo em que respeita a trama, permanecendo fiel.

Para exemplificar, em determinada página o protagonista contempla a vila de longe, no inverno, entre pássaros. Nota-se que ela é quase como uma ferida aberta no meio da neve. Uma lesão que Brodeck mesmo fingia que não estar ali e que só seria notada em poucos casos, como a falta de manteiga na sua casa, onde vive a senhora que o acolheu, sua filha e a esposa com uma grave chaga psicológica. É uma passagem muito sutil, mas que marca bem como Larcenet cria sem nenhuma palavra uma nova versão da ficção histórica.

Página de O relatório de Brodeck

A edição nacional tem capa dura, formato 28,4 x 22,2 cm, papel pólen com ótima gramatura e impressão, além de uma caixa protetora que pode conservar o álbum em pé na prateleira.

No final das contas, seja antes de duas guerras como em A fita branca, seja após elas, em O relatório de Brodeck, ou mesmo sem passar por traumas do gênero, a “banalidade do mal”, como carimbou a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), ainda está presente como uma violência declarada, inerente ao ser humano, mas que pode tentar ser ocultada de várias maneiras, inclusive por “documentos”.

Como Hermann Hesse (1877-1962) chegou a escrever em O Lobo da Estepe: “(...) Cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas ‘responsabilidades’ políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra”.

Classificação:

5,0

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