O Santo Sangue
Editora: Jupati Books – Edição especial
Autores: Laudo Ferreira (roteiro) e Marcel Bartholo (arte).
Preço: R$ 52,00
Número de páginas: 80
Data de lançamento: Setembro de 2018
Sinopse
A jovem Lucem se tornou uma santa para seu povo, graças à inusitada capacidade curativa de seus fluidos menstruais, que não cessam. Maldição ou dádiva divina?
O pai da garota não se importa e deseja apenas a morte do homem que acredita ter sido o responsável por essa situação. Vernio, um velho e infalível matador profissional é contratado. Mas para alcançar seu objetivo precisará confrontar a si mesmo num duelo íntimo que poderá transformá-lo.
Positivo/Negativo
A fé e a religiosidade são as correntes que unem o rosário do misticismo, alimentado com o mantra sibilado das orações na ponta dos dedos nas romarias do Agreste. Algo tão intrínseco que se une ao folclore e à cultura das regiões.
Geralmente, a figura santeira ou o simbolismo milagreiro são ligados ao sangue, seja na hóstia que transmuta no líquido vermelho ou nas lágrimas derramadas por uma imagem sagrada. A definição de sacrifício bíblico, passado de forma hereditária por meio da crença.
Não é uma exclusividade do cristianismo, visto que há rituais dedicados ao sangue recorrentes entre os povos ameríndios, por exemplo, incluindo os que envolvem o ciclo menstrual.
Concentrando em O Santo Sangue, parceria entre Laudo Ferreira e Marcel Bartholo, a jovem Lucem é a síntese da devoção mariana, mas paradoxalmente por um meio que não é visto com “pureza” neste contexto religioso: o fluxo sanguíneo de origem uterina.
Na doutrina cristã, o órgão sexual feminino faz parte do chamado pecado original, no qual tem como incumbência explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal através da queda do homem.
Entre o sagrado e o profano, é curioso notar como o roteirista promove uma dicotomia com uma sequência num bordel com uma prostituta e em outra, com o encontro do matador e a “menina santa”.
Essa dualidade aparece em diferentes momentos, mostrando outros paralelos, como o homem do poder – um velho coronel, pai da garota santa –, que não acredita em tais fenômenos, mas tolera a casta menos favorecida invadir suas terras para testemunhar os milagres terapêuticos.
Para o abastado fazendeiro, o que acontece com a jovem Lucem é uma maldição que se estende a ele. Por isso, tenta cortar o mal pela raiz quando convoca o calejado Vernio.
A mensagem de “cura” vai muito além da dor física, das marcas do povo sofrido e da cresça ostentada com estandartes simbolizando a fé. Uma peça-chave para entender esse discurso mais amplo reside na minguada e importante imagem da velha bruxa que vive na embocadura de uma floresta.
Laudo Ferreira, que também é desenhista (vide obras como Yeshuah Absoluto, Cadernos de Viagem e Olimpo Tropical), abdica da função neste álbum para dar espaço à arte barroca de Marcel Bartholo.
Uma decisão bem acertada, já que o traço rústico “talha” as páginas com o giz, deixando a atmosfera tão pesada quanto às lágrimas dos retirantes na visão do modernista Candido Portinari (1903-1962).
Há uma visível evolução experimental nos expressivos desenhos do quadrinhista, coautor de Insubstituível (com roteiro de Mavian) e Carniça (história de Rodrigo Ramos). Esta última, inclusive, flerta tematicamente com O Santo Sangue.
A paleta de cores deixa claros os momentos de flashbacks, até mesmo as lembranças (mais espectrais e fantasmagóricas) dentro da recordação maior, além de ganhar destaque no confronto entre o velho pistoleiro e a sua “vítima”. Cada parte é bem demarcada pelo uso dos tons.
Mesmo com a montagem dos quadros dinâmica, Bartholo envolve todas as páginas com um clima pesado e claustrofóbico, até “se libertar” numa sequência de splash pages e diagramação sem requadros. Tudo para dialogar com o abstracionismo que lhe é cobrado.
O Santo Sangue é uma publicação da Jupati, selo da Marsupial Editora, no formato 20,5 x 27,5 cm, tem capa cartonada com orelhas, papel off-set de boa gramatura e impressão. A edição traz pouquíssimos erros de revisão.
Laudo e Bartholo souberam contar uma história simples, cheias de arquétipos, mas sem ser necessariamente direta. O leitor pode encontrar conexões com outros trabalhos do roteirista, como os já citados Yeshuah e Cadernos de Viagem.
Sem uma resposta correta para o que é maldição ou o que é dádiva, a única certeza retratada na obra é a de que “no mundo tudo se cura”. Indubitavelmente.
Classificação:
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