QUANDO MEU PAI SE ENCONTROU COM O ET FAZIA UM DIA QUENTE
Editora: Quadrinhos na Cia - Edição especial
Autor: Lourenço Mutarelli (roteiro e arte).
Preço: R$ 44,50
Número de páginas: 104
Data de lançamento: Dezembro de 2011
Sinopse
Após a morte de sua esposa, um idoso fica profundamente consternado. Os dias passam e ele não parece melhorar. Procurando animá-lo, seu irmão o leva para pescar. Durante o passeio, algo extraordinário acontece. Ou assim parece.
Positivo/Negativo
Pode-se dizer que o relacionamento de Lourenço Mutarelli com os quadrinhos vai meio pela contramão.
Quando começou, na metade final da década de 1980, ele até tentou seguir os passos de Laerte, Angeli e contemporâneos, fazendo histórias de humor. Fez fanzines e participou do suplemento Mau, na revista Animal, e da revista Tralha. Mas o humor não lhe servia, não lhe fazia feliz.
Então, em 1990, ele publicou o pesadíssimo Transubstanciação, primeiro de uma série de álbuns marcados por um desespero crônico e uma ansiedade virulenta. Não eram apenas histórias em quadrinhos, mas uma forma de terapia pela qual o autor procurava se recuperar de forte depressão causada por uma experiência traumática.
A partir de 1999, com a série de álbuns protagonizada pelo personagem Diomedes, o estilo de Mutarelli ganhou sutileza. O bizarro, o insólito e a melancolia ainda eram características de seu trabalho, mas apresentavam-se de um modo mais maduro e refinado.
Tendo iniciado uma carreira literária, com livros como O cheiro do ralo e O natimorto, Mutarelli declarou que os quadrinhos não mais lhe chamavam a atenção e cessou sua produção. A caixa de areia, lançado em 2006, foi seu último álbum, e provavelmente sua melhor obra até então.
Agora, seis anos depois, o autor volta a trabalhar com a linguagem sequencial.
Ou pelo menos é assim que a Quadrinhos na Cia. divulgou Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente: o retorno de Mutarelli aos quadrinhos.
Novamente, Lourenço segue pela contramão. Desta vez por ousar com um trabalho que muitos podem considerar um livro ilustrado e não uma história em quadrinhos.
Essa impressão é criada a princípio pelo formato horizontal (27,5 x 20,5 cm). Depois vem a utilização de apenas uma ilustração por página, que rompe com a ideia de uma página com diversos "quadrinhos" em sequência. O texto presente não está contido nos tradicionais balões ou recordatórios e parece flutuar independente das imagens.
Por essas razões, a obra pode ser tomada como livro ilustrado e não como história em quadrinhos. Mas o fato é que Quando meu pai... realmente é difícil de classificar.
As ilustrações pintadas em tinta acrílica, predominantes no livro, relacionam-se com o texto, mas de maneira não-linear. A imagem de um caminhão arrebentado contra um poste só vai ganhar sentido com o texto que se encontra páginas depois.
Há o retrato de um senhor de chapéu que parece se repetir pelo menos 14 vezes ao longo do livro. Essa imagem é baseada no escritor William Burroughs, admirado por Mutarelli.
Por outro lado, se a figura do homem de chapéu se repete, a ilustração nunca é a mesma. A escolha de cores e as pinceladas tornam as imagens distintas entre si, embora representem (talvez) o mesmo personagem.
Imagens que parecem as mesmas, mas não são, se referem à questão da representação, um tema que surgiu durante a série de Diomedes e que apareceu também em A caixa de areia e nas obras literárias de Mutarelli.
A representação também está em um dos hobbies do "pai": a coleção de fotografias antigas de pessoas desconhecidas.
Nesse momento, Quando meu pai... aproxima-se muito de outros quadrinhos de Mutarelli, publicados no álbum Mundo Pet, de 2004. Eram histórias coloridas, pintadas sobre fotografias.
A fotografia é associada à representação em duas dimensões mais fiel de uma pessoa. Quando se pinta sobre ela, quando se ilustra, parece que a representação vai se afastando cada vez mais da pessoa. Mas a relação sempre permanece a mesma: ilustração e fotografia apenas representam; e jamais serão a pessoa original.
Se a imagem pode perder a ligação com a pessoa, a representação também torna-se frágil e, com ela, a questão da própria identidade. Daí as pinturas abstratas, as cores em misturas lisérgicas que vão aparecendo pelo livro. A noção de realidade torna-se frágil, a realidade vivida pelo "pai" sofre um sério abalo, esfacela-se.
A fragilidade das representações de identidade e realidade acabou se tornando um dos temas frequentes no trabalho de Lourenço Mutarelli.
Além de Burroughs, o escritor Kurt Vonnegut, o próprio autor e seus amigos, Mário Bortolotto e Paulo de Tarso, aparecem ilustrados nas imagens do livro. São pessoas reais e, ao mesmo tempo, não são. São rostos de verdade no tio pescador, nos transeuntes desconhecidos e criadores de porcos.
Mais do que elucubrações sobre linguagem, a trama de Quando meu pai... também carrega muita melancolia, talvez a característica principal do estilo do autor.
É uma tristeza que toma forma nas ausências das pessoas das fotografias, da mulher que morreu, da vida que passou. Uma tristeza fria, madura, resignada.
Tristeza que se faz ver nas expressões redesenhadas à exaustão, no leito seco do rio, no silêncio das imagens que se repetem, sem nunca serem as mesmas.
E o ET? Quem sabe? Uma alucinação do pai, uma invenção ou uma esperança. Daí é o leitor que vai buscar sua verdade nas pinturas, no texto, nas entrelinhas.
Quando meu pai... apresenta uma narrativa em que ilustração e texto têm relação e interação complexa e as imagens têm mais peso do que as palavras que as acompanham.
A linguagem sequencial está presente, mas não apenas de maneira linear. A disposição em páginas separadas permite que os quadros possam se relacionar em múltiplas sequências criadas pelo próprio leitor.
História em quadrinhos ou livro ilustrado? Independentemente de qual rótulo queira se aplicar, Quando meu pai... é um ótimo trabalho, de muitas leituras e significado.
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