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Talco de vidro

10 abril 2015

Talco de vidroEditora: Veneta – Edição especial

Autor: Marcello Quintanilha (roteiro e arte).

Preço: R$ 59,90

Número de páginas: 160

Data de lançamento: Março de 2015

Sinopse

Thriller psicológico sobre a inveja que acompanha uma crise existencial de Rosângela, uma dentista bem-sucedida da classe média alta de Niterói, no Rio de Janeiro.

Tendo como estopim a figura de sua prima, a queima do pavio faz com que a personagem afunde em uma espiral de autodestruição.

Positivo/Negativo

Para o bem ou para o mal, sentimentos e desejos podem ser vistos como “engrenagens” da vida de uma pessoa. Caso essas impressões e sensações não sejam equilibradas na rotação do dia a dia, podem perfeitamente remoer e desgastar tais “peças” que movem o destino do indivíduo.

Dependendo do grau e da densidade de sentir o desejo ou o ímpeto para obter algo que a outra pessoa possui, a inveja pode destruir “silenciosamente” um ser humano por meio do pesar do bem alheio.

O alcance obsessivo e as consequências desse sentimento corrosivo são a coluna vertebral de Talco de vidro. Tudo gira em torno de Rosângela, dentista que teve seu primeiro consultório montado com ajuda do pai, bem casada com um médico de sucesso, mãe por duas vezes e dona de seu próprio nariz (e do seu próprio carro, presente surpresa do marido).

Um universo perfeito como cristal, a não ser pela fascinação da protagonista pela sua prima Daniele, uma bela jovem que mora com os pais em virtude de um casamento malsucedido, não terminou a faculdade e tem vergonha dos não ocasionais escândalos do seu pai por causa das corriqueiras bebedeiras.

Mesmo com todo o preconceito velado que Rosângela alimenta por esta parte da família, que não vive no bairro nobre de Niterói, o “bom senso” e a “decência” maquiados com uma boa dose de pseudopiedade fazem com que a dentista aceite e deixe esses parentes por perto.

Sem o laque hipócrita da falsa indulgência, a realidade “pede” um público para garantir a exposição de seu status quo do mesmo jeito que muitas pessoas vão ao enterro de alguém para certificar que a morte é palpável.

Outro bom exemplo dessa caixa de maquiagem é quando, nas visitas pouco regulares ao bairro “do proletário” que a personagem faz questão de esquecer – com direito a café no copo de requeijão e bolacha de água e sal com margarina –, Rosângela sentia (sem pensar nisso) que seus consolos com a tia soariam menos o contrário daquilo que queria dizer. Visitas testemunhadas pela rotação do ventilador de teto quando se está no calor niteroiense, e a personagem faz questão de mencionar o ar-condicionado da sua casa.

Esses detalhes se transformam em redomas que separam praticamente a mesma casta social – a classe média –, mas que tem o peso e a medida dos que possuem algo a mais. Rosângela tem o status e o poder aquisitivo, mas a prima possui algo não palpável (por isso de difícil explicação), que falta a dentista. Não se engane: isso poderia acontecer em qualquer esfera social. E acontece.

Tão difícil descrever e explicar essas sensações da personagem, que a narração em terceira pessoa ao longo do álbum ensaia, esboça, enfatiza e divaga em cima delas. Tudo com a naturalidade coloquial de Quintanilha, a marca registrada do autor.

Essa tentativa de verbalização ganha mais força com a repetição de ideias e imagens, como se fossem frisadas pelo quadrinhista para adentrar no terror psicológico que cerca Rosângela. Isso gera certo desconforto no leitor, mas é pertinente para o enredo.

Diferente de Tungstênio, obra lançada em 2014, também pela Veneta, que esteve no alto do pódio de várias listas de melhores do ano, a arte de Talco de vidro é menos detalhista e mais etérea, usando e abusando das retículas e casando com a sugestibilidade da narrativa.

Apesar do traço mais “indeterminado”, os personagens desfilam uma naturalidade crédula, seja quando a mãe levanta o rosto para evitar as lágrimas de ver sua filha mergulhada na depressão, seja por uma bola mal chutada de volta na pelada da praia.

Quintanilha mostra uma reflexão que poderia ser muito bem de nós mesmos, seres humanos que já sofreram ou sentiram o sentimento da inveja ou que têm embutidos aqueles preconceitos que fazem parte do caráter, mas que nunca vieram à tona nos pensamentos e autocríticas.

O mundo perfeito e cristalino de Rosângela tem seus limites até quando essa “redoma social” que separa “o joio do trigo” é rachada. A superação de uns podem gerar frustação em outros, mesmo quando se percebe que o casulo do carro zero km não importa mais.

Relevante para desencadear o abalo psicológico na protagonista, o quadrinhista não chega a explorar com mais abrangência os instrumentos cirúrgicos, elementos que podem gerar pavor através das lembranças de visitas ao consultório odontológico.

Assim como a Salvador de Tungstênio, Marcello Quintanilha se sente à vontade para explorar sua cidade natal, seja na dicotomia social entre os bairros de Icaraí e Barreto, seja na vista da cidade com a Ponte Presidente Costa e Silva ao fundo ou o tom nostálgico do aeroporto Santos Dumont, ou até mesmo a lendária Pedra de Itapuca, monumento natural combatendo a erosão do fluxo e refluxo da maré.

Outra semelhança com Tungstênio é o capricho da Veneta na edição de Talco de vidro: capa dura, papel couché com boa impressão e um formato um pouco maior na altura que a obra anterior (17 x 26 cm). O que carece é uma biografia do autor, que assina belas crônicas de brasilidade como A fealdade de Fabiano Gorila (1999), Sábado de meus amores (2009) e Almas públicas (2011), todas lançadas pela Conrad, além da adaptação de O Ateneu (2012, Ática).

Independentemente do grau, quem já sentiu inveja alguma vez na vida se identificará de certa forma com a universalidade do tema. Talco de vidro não é o manual de instruções para evitar que a engrenagem fique remoendo, mas é um vislumbre do que pode vir a ser a natureza humana. Ou a natureza da fera.

Classificação

4,5

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