Um Pequeno Assassinato
Editora: Pipoca & Nanquim – Edição especial
Autores: Alan Moore (roteiro) e Oscar Zárate (arte) – Originalmente em A Small Killing (tradução de Marília Toledo).
Preço: R$ 54,90
Número de páginas: 112
Data de lançamento: Novembro de 2017
Sinopse
Timothy Hole é um publicitário bem-sucedido que acaba de aceitar o trabalho de sua vida. Contudo, as coisas começam a sair dos trilhos quando ele passa a ser perseguido por uma estranha criança, que o faz se questionar quem realmente é e, principalmente, como afeta as pessoas ao seu redor.
Uma história sobre os pequenos homicídios que todos têm de cometer para seguir em frente. Um rastro de mortes de coisas aparentemente insignificantes. Afinal, quanto dano pode causar um pequeno assassinato?
Positivo/Negativo
Foram quase dois anos entre o lançamento britânico de Um pequeno assassinato e a queda do Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria construído pela Alemanha Oriental para separar a Berlim Ocidental, não comunista, da Oriental.
Alan Moore, que já vinha dos louros do mainstream norte-americano por causa de obras como A Saga do Monstro do Pântano e Watchmen, estava focado no lado mais "independente" no final dos anos 1980. Chegou a criar uma editora, a Mad Love, e lançou títulos como a antologia contra o preconceito sexual AARGH – Artists Against Rampant Government Homophobia e o incompleto Big Numbers. Nesse período, séries como Do Inferno também estavam ganhando seus primeiros capítulos.
Obras menos cultuadas escritas por Alan Moore geralmente são pequenas pérolas que precisam ser lustradas para captar seu real brilho. Um pequeno assassinato é o exemplo de como o roteirista colocava toda a sua complexa análise para determinados assuntos fora das grandes editoras e, paradoxalmente, do eixo "comercial".
Tanto que a obra produzida em conjunto com o argentino Oscar Zárate foi publicada nos Estados Unidos dois anos depois – na mesma época na qual ele retorna à indústria mainstream de quadrinhos, pela Image Comics – ganha um Eisner Award de Melhor Graphic Novel, e, mesmo assim, é uma das pouco lembradas da sua carreira.
Foi nesse período "transitório" pelo qual Moore vinha passando que se encaixa a proposta que partiu do próprio Zárate, algo bastante incomum para o roteirista aceitar. Talvez esse estado de mudança possa justificar o esquecimento na lista de melhores quadrinhos feitos pelo mago de Northampton. Pode-se colocar como uma "contradição", já que a escolha do universo a ser explorado é a publicidade.
Isso não implica que o roteirista abandona ou explora temas que foram pertinentes nas suas outras obras. V de Vingança, por exemplo, tem a crítica política (principalmente ao liberalismo conservador de Margaret Thatcher) e a simbologia que também aparecem neste álbum.
A exploração da cultura yuppie e do capitalismo selvagem pode ser vista desde o sorriso cheio de dentes da aeromoça com figurino da bandeira estadunidense (alguém pensou em Ronald Reagan?) até as saraivadas de referências publicitárias nas festas desses profissionais.
A selvageria nesse ponto inclui traumas de guerra como vender sushi em Pearl Harbor ou ainda colocar uma famosa marca de acessórios de bebê na cena clássica (e violenta) da escadaria de O Encouraçado de Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein (1898-1948).
O próprio personagem principal, na gana achar um meio de vender refrigerantes para a Rússia pós-soviética, comenta que eles – os russos – querem ser americanos. Ele pensa na lógica do próprio construtivismo bolchevique para sua campanha publicitária, substituindo foices e martelos por garrafas refrescantes da bebida.
Como de praxe, nada é gratuito nas páginas escritas pelo Moore. Se Timothy Hole vem de Sheffield é porque a cidade vivenciou um processo de desindustrialização pela política econômica da Era Thatcher. Ou o ano no qual o protagonista inicia sua carreira publicitária é o mesmo da nomeação da "dama de ferro" para primeira-ministra, 1979.
Todos os contextos passam pelo filtro da subjetividade do Hole (aliás, um sobrenome bastante sugestivo), sempre evidenciado na narração em primeira pessoa do monólogo interno. Como poucos, Moore sabe representar textualmente um fluxo de pensamento sem se perder no próprio, tornando-o algo diferente do que se é acostumado no meio, bem mais enxuto e racional.
Símbolos de transformação e mudança por intermédio dos meios de locomoção, sempre do maior para o menor, do complexo para o simples, do coletivo para o individual: avião, trem, carro, bicicleta e, por fim, a pé. Espacialmente existe também essa "regressão", de grande aglomerações como Nova York e Londres à pequena Sheffield, seu lugar de origem, agora praticamente uma cidade fantasma (note uma cena na qual há vários lençóis brancos pendurados no varal – assombrações do passado).
Mesmo que o leitor saiba quem é essa misteriosa criança perseguidora, o mais importante em Um pequeno assassinato é o caminho que o protagonista percorre (de volta). No fim, nada mais é do que o modo como nosso passado e nossas ações afetam o que somos atualmente.
Observando pequenas pistas pode-se perceber como Timothy Hole mudou e como esse confronto com os erros do passado não o faz cair na real, pois ele mesmo já tinha consciência disso. É ai que há o estalo de como o autor faz um paralelo com Lolita, romance de 1955 escrito pelo russo-americano Vladimir Nabokov (1899-1977).
Além da origem do romancista e da relação obsessiva entre um personagem infantil e outro adulto, o livro traz esse viés de que os atos (do passado, pois o livro é narrado em flashback) são feitos com consciência, mesmo que se possa negar ou se iludir do contrário.
Outra evidência do "eu do passado" versus o "eu do presente" são os óculos. Preste atenção nas passagens (inclusive oníricas) em que ele está usando ou deixa de usá-los – e enxerga mais claramente. De forma sutil, é uma forma simbólica como outras representadas pelos desenhos do Zárate, assim como as orelhas capitalistas do Mickey Mouse espalhadas pelas páginas.
Ainda nesse quesito, veja como a ex-esposa dele o apelida em uma das recordações: Mr. Magoo, famoso desenho animado do final dos anos 1940, no qual o personagem tinha uma grave falta de visão. Nesta mesma sequência envolvendo uma casa de bonecas, uma brincadeira com a fuga da realidade, o olho de Hole está em destaque.
A construção de cada cena e como os personagens se disponibilizam e agem nelas são vitais para o aprofundamento dos mesmos. Seja na confissão do garoto numa mesa de bar frente a uma intocada garrafa de refrigerante, seja em como Hole encara as pessoas importantes na sua vida quando vai contar as inevitáveis verdades.
"Você gosta mesmo de cerveja?", indaga o menino sobre um dos maiores símbolos de se tornar um adulto. Quando ele revela seu objetivo na mesa de bar, repare o que tem nas mãos. Assim como as condutas passadas do protagonista movem a narrativa, as ações e pequenos gestos do presente constroem as camadas interpretativas.
Oscar Zárate trabalha muito bem o impressionismo no seu traço, conduzindo o olhar do leitor pelas cores ou confundindo-o com suas composições e figuras surreais. Ao mesmo tempo, há uma distinção significativa dos sonhos e recordações, sempre enevoados, desfocados e "gastos" com relação às formas sólidas da realidade.
O uso das cores é o destaque na arte. Quando explode um conflito entre a população e a força policial, Zárate enfatiza o vermelho, transformando aquele enfrentamento social em brasas. Em muitos momentos, o garoto está sempre metaforicamente iluminado, seja pelos faróis de um carro ou pela luz de dentro de um elevador.
Outro exemplo é o poder de síntese visual dos elementos e cores da derradeira página, que explica tão bem quanto se fosse descrito em um romance. Ou melhor até.
Assim como em muitas das obras de Moore, esses pequenos rebites formam um contexto por onde o leitor deve apreciar e ficar atento às alegorias e referências, desde o nome de uma música banda Talking Heads, até os fragmentos dessa mesma canção tocada não tão acidentalmente naquela situação, bem como a inicial estampada em uma tampa de um frasco de insetos.
São tantas alusões que fica impossível elencar por aqui ou em notas de rodapé na própria história em quadrinhos. O que cabe a quem está lendo é ir atrás dessas referências intertextuais e visuais para entender melhor como é bem pensado cada momento, mesmo que ele pareça banal, como a escolha da marca de refrigerante na sequência final.
Detalhes mínimos como peças publicitárias sobre "guerra e paz" de uma má digestão ou sobre o Apartheid vistas no portfólio do protagonista evocam novas perspectivas. Paralelismos do que ele foi e agora é podem ser resumidos em um adesivo de carro e na preconceituosa ideia automobilística que o fez merecer a proposta do refrigerante para os russos.
Quando finalmente Tim Hole encontra a ideia definitiva do seu anúncio para adentrar ao mercado russo às vésperas do colapso sociopolítico, ela pode ser entendida como uma crítica ao período, como também uma simbologia ao próprio homem, produto de um dos lados dessa moeda.
Um pequeno assassinato é também um símbolo da linha editorial da Pipoca & Nanquim em trazer obras ou autores pouco conhecidas no Brasil. Obedecendo o critério adotado pela editora, o álbum tem uma bonita textura em capa dura, formato 20,5 x 27,5 cm, papel couché fosco de altíssima gramatura e excelente impressão, na qual a arte e as matizes de Oscar Zárate agradecem para aproximar ao máximo da fidelidade estética.
Vale ressaltar o trabalho de tradução de um autor que usa e abusa de brincadeiras com jogos de palavras e os vários significados que elas possuem para além daquele contexto específico.
Completa a edição nacional uma entrevista com os autores sobre o processo de produção e o texto introdutório de Carlos Sampayo (roteirista das HQs Coltrane e Billie Holiday) publicada originalmente na versão espanhola de 2002, extras que nunca foram lançados juntos antes.
Há uma ou outra escorregada na revisão – como "encrustradas" –, mas nada tão grave que sobrepuje a qualidade do álbum.
Moore chegou a declarar que Um pequeno assassinato foi "cometido" assim que ele terminou Watchmen, outro "crime", no bom sentido, que é o caso da desconstrução da figura do super-herói.
É mais um exemplo de como os quadrinhos podem ser complexos e entrelaçados de significados, críticas e paralelismos. Tão contundente na mente de quem lê quanto presenciar o momento histórico da queda do Muro de Berlim. Ou de ter vivido para chegar a ver Gorbachev posando em frente ao McDonald's.
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