Uma metamorfose iraniana
Editora: Nemo – Edição especial
Autores: Mana Neyestani (roteiro e arte) – Originalmente em Une métamorphose iranienne (Tradução de Fernando Scheibe).
Preço: R$ 39,90
Número de páginas: 208
Data de lançamento: Junho de 2015
Sinopse
Mana Neyestani se tornou vítima do sistema totalitário instaurado pelo regime do Irã em 2006, no dia em que desenhou uma conversa entre um personagem e uma barata no suplemento infantil de um jornal iraniano. Nesse papo, o inseto utilizou uma palavra azeri.
Os azeris, povo de origem turca do norte do Irã há muito oprimido pelo regime central, se sentiram provocados com o desenho, que para muitos foi o estopim para desencadear um levante.
O regime de Teerã precisa de um bode expiatório: Mana Neyestani. Ele e o editor da revista são detidos e mandados para a prisão 209, uma seção não oficial da penitenciária de Evin, sob a administração da Vevak, o ministério das Informações e da segurança nacional.
Positivo/Negativo
Para concluir uma das suas mais conhecidas obras, A Metamorfose, Franz Kafka (1883-1924) teve menos de um mês. Paralelo à história do caixeiro viajante que um dia acorda transformado num inseto, o iraniano Mana Neyestani teve bem mais tempo para vivenciar seu recorte biográfico apresentado neste álbum: três meses preso.
Se Franz Kafka discorre sobre o estado emocional do homem, analisando o comportamento do protagonista e sua família, Uma metamorfose iraniana também coloca a vida do autor nesse prisma, adicionando a crítica do autoritarismo burocrático tão presente nas ideias de Kafka.
O problema maior é que Mana estava bem longe de uma crítica sócio-política como todo bom quadrinhista de jornais reformistas, que tiveram ascensão principalmente no final dos anos 1990. Particularmente numa noite de poucas ideias, a figura inocente de uma barata ganhou forma na sua tinta, junto com um termo azeri que até ele mesmo usava no dia a dia.
O que parecia um trabalho nada arriscado para um público jovem perante as críticas políticas por meio das ilustrações e charges, tornou-se um verdadeiro pesadelo para Neyestani.
Após as Guerras Russo-Persas, esse grupo étnico de origem turca da Ásia Central foi dividido em dois territórios, cuja maior parte se encontra dentro do Irã, mais especificamente na região ao norte, chamada de Azerbaijão Iraniano.
Os azeris são um povo cuja religião majoritária é o islamismo xiita, a mesma do Irã. Seu idioma também é muito próximo dos turcomanos.
Diante de tanta complexidade e no caldeirão de conflitos religiosos e políticos que é o Oriente Médio, o “mal-entendido” gráfico foi usado como uma alfinetada panfletária que causou discórdia e tumulto no Azerbaijão; e “o pato” – ou seria o inseto? – foi pago pelo ilustrador e seu editor.
Como uma sobrevivente à altura de inseticidas e hecatombes nucleares, a barata vai acompanhá-los durante todo o longo episódio, como um lembrete incômodo do autoritarismo kafkiano do regime vigente.
Em capítulos curtos, Mana Neyestani usa várias chineladas criativas, deixando a narrativa angustiante, mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente mostra seu tom irônico e bem-humorado.
Os exemplos podem ser vistos nas temerosas reflexões que o autor faz de seu destino com o passar do tempo, como também no uso bastante oportuno de várias referências metalinguísticas.
Na obra, Neyestani coloca um nariz de Pinóquio no diretor do jornal que promete apoio, dá corda no advogado que canta de cor artigos do código penal, imagina a cela como uma ilha isolada ou simplesmente ganha asas e quebra a moldura da diagramação (sendo repreendido pelo chefe da segurança pela metáfora).
Na época, até um jogo de futebol entre o Irã e México, na Copa do Mundo de 2006, vira motivo de esperanças de acalmar as tensões no Azerbaijão.
Com um traço cheio de hachuras, que lembra o melhor do underground de Robert Crumb, o quadrinhista vai construindo não só as suas memórias, mas também as suas impressões além dos registros fieis, como a ida de olhos vendados à sala de interrogatório.
A tensão cresce quando ele e o editor são transferidos para o prédio principal, convivendo com outros detentos com identidade e delitos falsos. Novas situações e personagens são apresentados, impulsionando a trama para o paciente plano de fuga junto com a esposa, quando Neyestani é colocado em liberdade provisória.
Perseguições políticas, arbitrariedades praticadas em nome da lei e a questão sempre polêmica acerca da liberdade de expressão automaticamente remetem a episódios como o ocorrido em janeiro deste ano, no ataque contra a redação da revista Charlie Hebdo, na França (país onde Mana Neyestani atualmente reside), que deixou 12 mortes e vários feridos.
A publicação da Nemo segue o padrão editorial de outros títulos da editora, como O mundo de Aisha e O muro: volume em brochura com formato 17 x 24 cm, capa cartonada com orelhas, papel offset de boa gramatura e impressão.
Há algumas poucas “escorregadas”, como todas as numerações dos capítulos serem por extenso, menos o primeiro (indicado por algarismo arábico, “1”), a omissão das palavras “de uma” no recordatório da página dupla (20-21) – “...por causa de uma simples palavra...” –, e o hífen em “procurador-geral” no primeiro quadro da página 26.
Enfim, nada que diminua Uma metamorfose iraniana, que é uma das melhores HQs deste primeiro semestre, garantindo a Nemo como uma das principais editoras do Brasil no equilíbrio qualitativo e quantitativo de materiais que raramente seriam vistos por aqui.
Classificação