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Você é minha mãe?

17 março 2014

Você é minha mãe?Editora: Quadrinhos na Cia. – Edição especial

Autora: Alison Bechdel (texto e arte).

Preço: R$ 54,00

Número de páginas: 304

Data de lançamento: Julho de 2013

Sinopse

Em uma história autobiográfica, Alison Bechdel tenta compreender qual é sua relação com a própria mãe e de que maneira isso tem refletido em sua vida e obra.

Positivo/Negativo

Não é recente (nem surpreendente) a associação entre histórias em quadrinhos e leituras facilitadas, que o digam a quantidade de adaptações literárias em HQ que visam simplificar a leitura dos clássicos.

Isso pode ser atribuído a duas crenças muito popularizadas, mas, no entanto, falsas. Uma é de que é mais fácil ler uma imagem que um texto verbal; a outra é de que se deve simplificar no ensino (“porque é sempre bom simplificar”, diz o personagem de A arte e a maneira de abordar o seu chefe para pedir um aumento, livro de Georges Perec).

Esquece-se do valor da dificuldade, da força da dúvida, do instigar que as perguntas trazem em lugar das respostas prontas e empacotadas. E há tudo isso em Você é minha mãe?, de Alison Bechdel. A complexidade da obra é tanta que uma resenha (como esta) poderia apontar para diversos caminhos e desfilar muitas opiniões, mas restará a todo texto que se fizer sobre esta HQ um sentimento de incompletude, que é o maior aplauso que a autora poderia receber.

A recepção crítica estrangeira na ocasião do lançamento do livro foi extremamente positiva, elencando diversas características de Você é minha mãe?. Para se ter uma ideia, veja as resenhas do Guardian, NY Times, CBR.

Toda essa complexidade e expansão de sentidos em teia (como em um dos sonhos mostrados na história) encontra sua expressão num gênero de pouquíssimos membros nas HQs: o ensaio. Claro, o ensaio em quadrinhos.

O ensaio nesse sentido não é aquele texto acadêmico de mesmo nome que alguns leitores já devem ter produzido em troca de notas em seus cursos de graduação e pós, mas sim a forma textual criada por Michel de Montaigne no Século 16.

A definição de ensaio é mais uma daquelas pegadinhas teóricas (tipo “o que é arte”, “o que é literatura”, “o que são HQs” etc.) que podem render teses e livros em abundância – recomenda-se a leitura de A forma do ensaio, de Theodor Adorno e de Ensaios, de Montaigne.

Mas numa tentativa de apresentar alguns elementos típicos de um ensaio há o seguinte: uma forte presença da voz autoral, a colocação do “eu” o tempo todo, a presença maciça do “acho”; o desenvolvimento de um pensamento, a construção de uma reflexão e não um conceito pronto e a defesa desse conceito; a não obrigatoriedade da especialização do autor no campo em que fala (no caso da Bechdel, psicologia); a apresentação do percurso, e não das conclusões.

Qualquer leitor de Você é minha mãe? encontra esses elementos na obra sem muitas dificuldades. Bechdel se retrata na HQ a pessoas com quem conviveu, além de ela ser a protagonista. O leitor acompanha os pensamentos dela, suas memórias, seus sonhos, suas mudanças de casa, suas conversas, suas sessões de análise e, principalmente, sua insegurança.

Vê-se a construção dos álbuns em paralelo às tentativas de Alison em construir uma relação saudável com sua mãe. A HQ mostra o processo prioritariamente, são poucos os pontos em que se fala sobre produtos prontos e acabados. O que se vê são estudos para a obra, estudos para entender a mãe, estudos para se entender.

Nesse grupo de estudos saltam dezenas (se não centenas) de citações aos livros de psicologia que a autora/protagonista lê. E essa é outra amarra com a hipótese da HQ ensaio, pois os ensaios também citam estudiosos, filósofos e escritores.

Dentre os citados, destacam-se claramente duas pessoas: Donald Winnicott (responsável por teorias que interessam a Alison) e Virginia Woolf (escritora importante para a autora da HQ e nunca lida por sua mãe). Desses dois, citam-se diários, biografias, trechos de ensaios e de ficção.

Novamente, nada se completa. Mas a incompletude não é por conta da forma escolhida, mas sim pelo tema. Na verdade, a forma e o tema dialogam de maneira íntima e se realimentam. Mas o hibridismo de gêneros não para por aí.

O subtítulo do livro é Um drama em quadrinhos (o de Fun Home é Uma tragicomédia em família) e já apresenta uma ideia de junção de gêneros. Drama, aqui, não é apenas a situação vivida pela personagem, mas sim das artes dramáticas, que, de acordo com a teorização clássica, dão luz à comédia, à tragédia e à tragicomédia. É como se Você é minha mãe? fosse um passo atrás em busca de mais abrangência do que Fun Home, como se buscasse sua origem.

A base do cinema narrativo contemporâneo e, por consequência, das HQs narrativas mais tradicionais e, obviamente, do teatro (mostrado várias vezes no álbum com atuações da mãe de Alison) é o drama nos termos aristotélicos.

Vale uma observação que “catarse” é um termo importante tanto para psicanálise quanto para a tragédia, e que Freud conceitua o complexo de Édipo a partir de Édipo Rei, de Sófocles.

Você é minha mãe? é classificado como “memórias”, o que não é em nada errado, embora, como é próprio das classificações, insuficiente. As memórias são construções narrativas que os humanos criam para organizar sua vida. Uma memória não é uma verdade, é apenas uma posição sobre o fato. O “mas eu vi” continua sendo uma posição, tão real e possível quanto as demais.

A necessidade de marcação de uma visão particular, a “minha visão”, é um dos motes da obra, que trata da busca da identidade, em que a mãe parece ser uma fonte falha de afeto. Alison fala de si ou de como tenta ser ela mesma, mas sua escavação é tão profunda, que ela obtém o humano.

A obra não interessa apenas a ela ou quem compartilha qualquer das características dela, mas a qualquer um disposto a se enredar nessa complexidade que é uma mente em dúvida.

Além de todas essas questões, há também o jogo de espelhos: na obra, no capítulo chamado O espelho, há uma citação de Lacan sobre isso, mas existe também outra associação especular entre mundo real e ficção.

Bechdel apresenta a sua vida e o seu trabalho com saltos temporais, pois, como a memória, Você é minha mãe? não é linear. Assim, o leitor acompanha Alison em processo com Fun Home e em processo com Você é minha mãe?

No presente da história, há momentos em que nenhuma das obras existe, a não ser como projeto e ideia, mas há a obra na mão do leitor (um processo equivalente ao do livro Ribamar, de José Castello).

Há a repetição de cenas, quadros e frases no álbum, como já usado antes em Fun Home. E é justamente num retorno de memória que a obra se encerra, logo após Bechdel afirmar que destruiu a mãe e ela sobreviveu a essa destruição. A HQ termina com um balão de Alison, em uma memória infantil, depois de encenar uma brincadeira (novamente, o drama) com a mãe e ela ter lhe dado apoio: “Agora já posso levantar”.

Em uma obra de perguntas como esta (até o título é uma), parece acertado encerrar a resenha com uma frase de Alison, na página 198, quinto quadrinho, tradução de Érico Assis, que resume a aposta da autora: “Hã... sei lá... não é mais universal sendo particular?”.

Classificação

5,0

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