Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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ZAP COMIX

1 dezembro 2004


Autores: Robert Crumb, S. Clay Wilson, Rick Griffin, Robert Williams,
Manuel Spain Rodriguez, Victor Moscoso, Gilbert Shelton e Paul Mavrides
(roteiro e arte).

Preço: R$ 39,00

Número de páginas: 192

Data de lançamento: Outubro de 2003

Sinopse: Compilação que reúne diversos momentos da revista underground
americana Zap Comix, importante marco da contracultura (anos 60
e 70).

Positivo/Negativo: Feche esta janela aquele cujos pais nunca se
importaram que passassem os dias a ler "inúteis gibis". Afortunados os
admiradores dessa arte incompreendida que não penaram com esse tipo de
repressão, nem tiveram seus álbuns raros rasgados por mães hepáticas.

Desde que o mundo é mundo e o pequeno Nemo passeava pelos campos oníricos
bidimensionais dos jornais de domingo, pais e comics não se dão
bem. Nos Estados Unidos da década de 1950, então, essa desavença foi parar
no divã.

A "América", como se fora um mundo à parte (e de certa forma o é), passa
por ciclos contínuos previsíveis, um se seguindo ao outro, de liberalismo
e conservadorismo (devidamente representados em seus dois principais partidos:
respectivamente, o democrata e o republicano).

Nos anos 50, os conservadores dominavam. A base da sociedade estadunidense
(a liberdade de expressão) e todo seu viés democrático (a expansão de
uma nova cultura popular, sob a crosta da Indústria Cultural) haviam levado
o país a um esplendor jamais visto. Assim, o início do século XX acompanhou
a efervescência do jazz, Hollywood, Brodway, Norman Rockwell, a
literatura descartável em edições vagabundas (pulp fiction) e os
comic books (que são, enfim, o que nos interessa).

Com a surpreendente liberdade que caracteriza os novos meios, os quadrinhos,
em seus primórdios, assimilaram rapidamente características da cultura
de massa vigente, mesclando literatura (não só a pulp fiction,
como os clássicos) a cinema, ciência e até os estudos psicanalíticos da
época, fornecendo inúmeras inovações formais que seriam adotadas pelas
outras artes (cinema principalmente).

Embora fossem consideradas pelos críticos como "infantis" ou "emburrecedoras",
as primeiras obras atingiam em sua maior parte o público adulto e razoavelmente
esclarecido (afinal, eram publicadas em jornais). Datam dessa época áurea,
obras insuperáveis, como Krazy Kat e Little Nemo in Slumberland.

Consta que os soldados americanos consumiam dúzias de HQs nos frontes
da Segunda Guerra. Era de tal forma patente essa forte identificação do
"jeito americano de viver" com os comics, que um alto funcionário
do governo soviético, a respeito do medo ianque de uma invasão comunista
durante a Guerra Fria, disse: "eles podem ficar tranqüilos, não vamos
tirar seus quadrinhos".

Em nenhum outro país, portanto, podia ter se dado o fenômeno Zap Comix,
nos idos de 1968. A liberdade total das primeiras décadas durara pouco.
A América engrossou o caldo. O macarthismo invadia as ruas, criando
uma paranóia perigosamente semelhante à atual. Os quadrinhos não podiam
ficar de fora.

Satisfazendo o desejo de nove em cada dez mães estadunidenses, os gibis
foram formalmente acusados de levar a juventude à degeneração pelo "Senador
Joseph McCarthy dos comics", o Dr. Fredric Wertham, em seu livro
The Seduction of the Innocents (A Sedução dos Inocentes).

De acordo com o autor, leitores de quadrinhos tinham maior propensão a
se tornarem criminosos ou terem comportamentos socialmente inconvenientes
(Wertham atribuía, por exemplo, o aumento considerável da "pederastia"
nas forças armadas à leitura de Batman & Robin). Houve uma crise
imediata no setor. Os jornaleiros se recusavam a vender HQs (o lucro era
ínfimo, se comparado à perseguição das associações de pais).

A reação da até então bem-sucedida indústria dos comics (para evitar
uma séria restrição por parte do Congresso Americano) foi a autocensura.
Assim, foi criada logo em seguida o famoso Comics Code Authority,
que reunia as grandes editoras da época e instituía nos gibis uma visão
puritana.

Adotando o pensamento de Wertham como verdade incontestável, não só acabou
com o gênero horror (para a alegria dos quadrinhistas brasileiros, que
o transformaram no grande filão do mercado brasileiro, fazendo ótimas
HQs, nas décadas de 1960 e 70), como também pôs fim a quaisquer expressões
de erotismo (daí os heróis em certo período serem "capados"), decretou
a visão maniqueísta como padrão no tratamento das histórias... Enfim,
arruinou o que vinha sendo feito. Nada era comercializado nas bancas sem
esse selo, que era uma garantia para os pais de que seus filhos consumiam
produtos inofensivos.

Pra se ter uma idéia do estrago, basta dizer que, além da falência de
editoras especializadas (como a EC Comics, líder no ramo "terror"),
personagens clássicos tiveram de ser retrabalhados. Alguns autores desistiram
da carreira. Outros, como Carl Barks, conseguiram passar mensagens levemente
subversivas, de ataque às autoridades (principalmente na figura das absurdas
matronas americanas) em suas historietas cômicas.

Era um cenário aterrador. E totalmente propício para a aparição dos quadrinhos
alternativos (ou underground). A juventude rebelde, acalorada pelo
rock, excitada pela literatura bop da geração beat,
estava ansiosa para se expressar e construir um mundo que em nada lembrasse
o de seus pais. As HQs pareciam o ideal. Era uma forma de expressão recente,
ainda não contaminada pelos ácaros das bibliotecas oficiais.

Além disso, sempre associados ao infantil, ao lúdico, e agora à degeneração,
os comics eram o meio perfeito de divulgação da ideologia "sexo,
drogas e rock'n'roll" que tomava os corações daqueles jovens.

Tinha de acontecer. Estava escrito, com a tinta rala, o sangue escasso
e as parcas horas vagas de Robert Crumb.

Ele deu início a uma verdadeira revolução. Mandando às favas as grandes
editoras, escreveu e desenhou sozinho os três primeiros números (0, 1
e 2) da Zap Comix (com x, pra diferenciar dos comics bem
comportados oficiais), e foi vender com sua esposa grávida numa esquina
de São Francisco. Ainda hoje, seu exemplo é seguido por milhares de iniciantes
que fazem quadrinhos artesanais (os famosos fanzines).

A revista já nasceu subversiva. Nos números iniciais, Crumb fazia a apologia
à maconha ("Ajude a construir uma América melhor... Fique chapado!", por
exemplo) em sátiras às propagandas comuns nas revistas de antigamente
(que vendiam de tudo, até óculos de raios-X). Rompendo com quase todas
as regras impostas pelo Comics Code nos números seguintes, quando
diversos artistas se juntaram ao autor, a Zap conseguiu o grande
feito de ser proibida pelos órgãos oficiais de censura, no número 4, o
que fez dela um sucesso estrondoso.

Ao mesclar violência, sexo, indecências, delírios provocados pelo consumo
excessivo de LSD, cabala, sátira aos heróis certinhos, homenagens aos
mestres da Nona Arte, entre outras viagens, Zap Comix não só alimentou
a saudável loucura de toda uma geração, como também contribuiu muito para
o enriquecimento da linguagem da arte seqüencial, além de favorecer todo
um movimento underground que viria a posteriormente retomar a seriedade
dos quadrinhos americanos mainstream nos anos 80 (para vê-la novamente
afundada na década seguinte). Entre os autores da revista estavam:

l S. Clay Wilson, principalmente com seu Capitão Sporra e os Piratas
Pervertidos
, em infinitas e desproporcionais orgias homossexuais explícitas,
com diálogos como "Morda meu pau, marujo", "Me come", "Eu adoro gozar
na boca do George" e por aí vai; o que nos remete ao famoso Uivo de
Ginsberg
(e poemas subseqüentes, além, é claro, de Walt Witman com
seu O Captain My Captain). O ponto alto é quando o navio dos piratas
pervertidos é atacado pelo navio das bucaneiras lésbicas.

l Rick Griffin, um surfista que vivia chapado, e de tanto se drogar se
viciou em Cristo. Sua conversão foi motivo de chacota pra turma toda,
mesmo depois de sua morte. Suas obras são completamente "psicodélico-místicas"
- visões cósmicas à base de muito alucinógeno. Maior criação: Omo Bob.
Punha continuamente o Mickey e o Donald em suas histórias, desenhando-os
de modo original.

l Moscoso e seus delírios formais em que coisas se transformam em outras,
como num sonho confuso. Há também cenas de sexo entre personagens "ingênuos"
de desenhos dos anos 30. Sua homenagem a Krazy Kat (segundo muitos
críticos, a melhor coisa já feita em quadrinhos), nas páginas 178 e 179,
é muito bacana. Mas o melhor é a deliciosa loucura que começa na 127 e
envolve Donald e seus sobrinhos, Little Nemo in Slumberland, Pernalonga,
o Papa, um dinossauro esquisito, uma figura angelical, janelas etc.

l Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers, um dos expoentes
do underground, faz diversas participações. Seu "Javali-Maravilha",
tirando onda com os heróis certinhos (principalmente o Superman) é o ponto
alto. Ele chega a estuprar e estraçalhar sua Lois Lane com seu avantajado...
focinho! Mas há diversas belezas do autor na Zap, como a curta
Não me entregue, bem no espírito macarthista.

l Robert Williams com seu Coochy Cooty (uma espécie de formiga
que lembra muito o personagem evangélico Smilingüido) e sua alucinada
visão da justiça em Inocência Desperdiçada. Criou páginas surreais
que rivalizam com Salvador Dali.

l Spain Rodriguez, com suas histórias de motoqueiros e seu Trashman (personagem
meio justiceiro, meio anarquista) também participa. Seu estilo lembra
vagamente uma mistura de Shimamoto com Flavio Colin.

l Por fim, Robert Crumb, líder da turma, dando o exemplo com seu Mr.
Natural
(símbolo da era hippie), além de Tânia Tesuda, Almôndega
e Angelfood McSpade. Ele é bastante conservador em relação à forma,
sempre ficando com os velhos quadros fixos. No entanto, quanto ao conteúdo,
é arrebatador. É o criador de Fritz
the Cat
, um gato cínico que volta à casa dos pais para transar
com a irmã.

A Zap era vendida em lojas alternativas para hippies, beatnicks
e junkies em geral. Continuou sendo publicada esporadicamente até
1996, quando Crumb decidiu encerrar.

Diversas obras do autor estão sendo publicadas no Brasil pela Conrad,
que, aliás, fez um trabalho formidável neste álbum, que inclui ainda um
longo texto introdutório de Rogério de Campos. Uma das mais recentes é
América,
uma crítica ao pensamento americano.

Nascidas em plena era da reprodutibilidade técnica, sem possuir, portanto,
a sacra "aura" das obras de arte, as histórias em quadrinhos puderam,
enfim, seguir um caminho mais livre que suas irmãs conceituadas. A Zap
é prova disso. Ela, junto com os textos de Allen Ginsberg e Jack Kerouac,
mostrou o caminho para toda uma geração, ansiosa por mudanças (que talvez
não tenham vindo, ou sido o esperado). A recente onda conservadora norte-americana
tem ressuscitado o interesse por essa época. Seria uma nova revolução
por vir? Só podemos esperar.

Até lá, é ler a Zap Comix não uma, mas centenas de vezes, e se
preparar para a "batalha".

Classificação:

4,0

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