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Crítica: One Piece – A Série encontra seu tesouro

15 setembro 2023

Quando se pensa em adaptações de animês em live action feitas em Hollywood, muita gente automaticamente torce o nariz. Não é à toa. Foram muitas experiências negativas que minaram a alma de vários fãs que testemunharam horrores como Dragon Ball Evolution ou até o recente Os Cavaleiros do Zodíaco – Saint Seiya ­ – O começo, obras que não acreditaram nos materiais originais e fizeram mudanças para se distanciar deles.

Não era de se espantar que, quando a Netflix anunciou a produção de séries live action de Yu Yu Hakusho e One Piece, a recepção começou com vários pés atrás. Principalmente em se tratando do mangá dos piratas do Chapéu de Palha, ambientado num mundo cheio de criaturas e poderes lúdicos em sua própria concepção.

Como traduzir este universo para uma obra com atores de carne e osso? Após oito episódios, a gigante do streaming veio mostrar que investir num time que procura abraçar o animê traz resultados positivos. One Piece – A série é uma lufada de ar fresco no meio dessa tempestade de adaptações fracas.

Os elogios começam ao adaptar praticamente toda a primeira saga (East Blue) em oito episódios de 49 a 64 minutos. A história contida aí se desenrolou ao longo de 100 capítulos no mangá e 61 episódios no animê.

Entretanto, as decisões sobre o que cortar foram certas. Claro que resulta em impacto menor do que o da obra original, que pôde, por exemplo, desenvolver personagens secundários como os da Vila Cocoyasi, que encorpam o arco da Nami; mas o enxuto roteiro da série permitiu que a navegadora do bando fosse tratada como uma pessoa que passou por maus bocados e encontra sua determinação na luta contra seus traumas.

O exemplo da trama de Nami se reflete nos outros membros da tripulação. O roteiro aposta em flashbacks da infância de todos para investir nos desenvolvimentos dos arcos de cada um, e usa esse artifício para fechar ciclos narrativos de forma emocionante no último episódio. Méritos de uma equipe de roteiristas que buscou informações até nas perguntas que o mangaká Eiichiro Oda respondia aos fãs. O envolvimento do próprio autor também ajudou para que tudo transpirasse sua obra.

Claro, há momentos em que a transição para live action poderia ter sido melhor na forma com que algumas cenas são conduzidas, mas não chegam a ser ruins. E são tão poucos que nem chamam a atenção de verdade.

O mundo ludicamente fantasioso de One Piece, com elementos que perigam cair no ridículo (mas jamais o faz), é abordado com imenso carinho por sua equipe de realizadores. Um bom exemplo são os figurinos, que tratam o exagero como lugar-comum. Do imenso chapéu de mestre cuca do Chef Zeff ao sobretudo descamisado de Mihawk, ninguém questiona a funcionalidade ou praticidade das roupas. São parte das construções dos personagens, refletindo suas personalidades e a atmosfera alegre e jocosa da própria obra.

A decisão por usar efeitos práticos quando possível, algo já costumeiramente louvável, também ajuda na imersão. Notavelmente no bando do Arlong, em que os homens-peixe não são criações por computadores e, mesmo que algumas próteses necessitem de melhorias, o CGI nunca toma o protagonismo em tela. Luffy também não precisa usar seus poderes de borracha o tempo inteiro para que suas lutas sejam empolgantes. Aliás, as coreografias de batalhas merecem elogios, especialmente as que envolvem Zoro – mesmo com a inconsistência em que suas espadas tiram sangue dos oponentes.

Os cenários também merecem atenção. Percebe-se a necessidade de terem construídos locais mais contidos para a execução das cenas e planos abertos de vilas não são comuns como no animê, mas são vivos o bastante para fazer as ilhas do East Blue saltarem das páginas. É um deleite visual. Do navio Going Merry ao restaurante flutuante Baratiê; dos cartazes de procurados (aliás, a forma como são usados é uma ótima sacada) à caracterização visual dos piratas e oficiais da marinha; e até ao usarem a primeira música de abertura do anime (We Are) de forma instrumental em momentos-chave, são vários exemplos em que o universo de Oda transborda pela tela.

Mas talvez tudo tivesse ido por água abaixo com o elenco errado. Felizmente, não é o caso aqui. Nem de longe. A começar pelo mexicano Iñaki Godoy, intérprete do Luffy. A forma de trazer as excentricidades do futuro Rei dos Piratas para uma interpretação de carne e osso, não tendo as opções de exageros visuais que o desenho animado proporciona, é um belo acerto. Luffy conquista por sua simplicidade, determinação e coração. Iñaki incorpora tudo isso, cativando novos companheiros e espectadores.

O ator Mackenyu (aliás, o Seiya do live action de Cavaleiros do Zodíaco) traz a dose certa de mau humor e lealdade, tornando momentos em que o personagem sorri algo especial. Emily Rudd explora bem os traumas da Nami e sua transformação ao encontrar amigos de verdade; Jacob Romero traz a jovialidade de Usopp sem depender dos gritos e choros exagerados que só funcionariam em animação e no mangá; e Taz Skylar faz um Sanji que genuinamente se importa com que outros sejam alimentados e, principalmente, fez um bom trabalho ao adaptar a forma com que o personagem é louco por mulheres, algo que poderia tê-lo tornado bastante asqueroso na transição para live action. Oda criou um personagem que conquista como um sonhador nato. Fiel a seus amigos, é defensor feroz de suas aspirações, o que é admirado e compartilhado por todo o bando. Pode até ser uma proposta simples, mas é tão genuína que cativa.

Isso somado a impressionantes arcos narrativos, sagas impactantes com momentos memoráveis, lutas de tirar o fôlego e humor de primeira, fez One Piece ser um dos maiores fenômenos de vendas de todos os tempos nos mangás. Luffy é marcante como é porque inspira todos a seu redor (inclusive, os leitores) a buscarem seus sonhos. A série da Netflix consegue criar essa mesma mística em torno do personagem. Se isso não a estabelece como uma boa adaptação, poucas coisas o farão.

One Piece – A série
Duração: 8 episódios de 49 a 64 minutos
Estúdio: Netflix
Direção: Marc Jobst, Tim Southam, Emma Sullivan, Josef Kubota Wladyka
Roteiro: Steven Maeda, Lindsay Gelfand, Tom Hyndman, Matt Owens, Allison Weintraub, Tiffany Greshler, Ian Stokes, Diego Gutierrez, Laura Jacqmin, Damani Johnson
Elenco: Iñaki Godoy, Emily Rudd, Mackenyu, Jacob Romero, Taz Skylar, Vincent Regan, Morgan Davies, Aidan Scott, Jeff Ward, McKinley Belcher III, Craig Fairbrass, Peter Gadiot, Steven John Ward, Celeste Loots, Alexander Maniatis, Ian McShane

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